quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A morte e a morte de Quincas Berro D’Água - II

Os patifes que contavam, pelas ruas e ladeiras, em frente ao Mercado e na feira de Água dos Meninos, os momentos finais de Quincas (até um folheto com versos de pé-quebrado foi composto pelo repentista Cuíca de Santo Amaro e vendido largamente) desrespeitavam assim a memória do morto, segundo a família. E memória de morto, como se sabe, é coisa sagrada, não é para estar na boca pouco limpa de cachaceiros, jogadores e contrabandistas de maconha. Nem para servir de rima pobre a cantadores populares na entrada do Elevador Lacerda, por onde passa tanta gente de bem, inclusive colegas de repartição de Leonardo Barreto, humilhado genro de Quincas. Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro D'Água, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida. Em realidade, num esforço digno de todos os aplausos, a família conseguira que assim brilhasse, sem jaça, a memória de Quincas desde alguns anos, ao decretá-lo morto para a sociedade. Dele falavam no passado quando, obrigados pelas circunstâncias, a ele se referiam. Infelizmente, porém, de quando em vez algum vizinho, um colega qualquer de Leonardo, amiga faladeira de Vanda (a filha envergonhada), encontrava Quincas ou dele sabia por intermédio de terceiros. Era como se um morto se levantasse do túmulo para macular a própria memória: estendido bêbedo, ao sol, em plena manhã alta, nas imediações da rampa do Mercado ou sujo e maltrapilho, curvado sobre cartas sebentas no átrio da igreja do Pilar ou ainda cantando com voz rouquenha na ladeira de São Miguel, abraçado a negras e mulatas de má vida. Um horror!
Quando finalmente, naquela manhã, um santeiro estabelecido na ladeira do Tabuão chegou aflito à pequena porém bem arrumada casa da família Barreto e comunicou à filha Vanda e ao genro Leonardo estar Quincas definitivamente espichado, morto em sua pocilga miserável, foi um suspiro de alívio que se elevou uníssono dos peitos dos esposos. De agora em diante já não seria a memória do aposentado funcionário da Mesa de Rendas Estadual perturbada e arrastada na lama pelos atos inconsequentes do vagabundo em que ele se transformara no fim da vida. Chegara o tempo do merecido descanso. Já poderiam falar livremente de Joaquim Soares da Cunha, louvar-lhe a conduta de funcionário, de esposo e pai, de cidadão, apontar suas virtudes às crianças como exemplo, ensiná-las a amar a memória do avô, sem receio de qualquer perturbação.
O santeiro, velho magro, de carapinha branca, estendia-se em detalhes: uma negra, vendedora de mingau, acarajé, abará e outras comilanças, tinha um importante assunto a tratar com Quincas naquela manhã. Ele havia-lhe prometido arranjar certas ervas difíceis de encontrar, imprescindíveis para obrigações de candomblé. A negra viera pelas ervas, urgia recebê-las, estavam na época sagrada das festas de Xangô. Como sempre, a porta do quarto, no alto da íngreme escada, encontrava-se aberta. De há muito perdera Quincas a grande chave centenária. Aliás, constava que ele a vendera a uns turistas, em dia magro de má sorte no jogo, ajuntando-lhe uma história com datas e detalhes, promovendo-a a chave benta de igreja. A negra chamou, não obteve resposta, pensou-o ainda adormecido, empurrou a porta. Quincas sorria deitado no catre – o lençol negro de sujo, uma rasgada colcha sobre as pernas –, era seu habitual sorriso acolhedor, ela nem se deu conta de nada. Perguntou-lhe pelas prometidas ervas, ele sorria sem responder. O dedão do pé direito saía por um buraco da meia, os sapatos rotos estavam no chão. A negra, íntima e acostumada às brincadeiras de Quincas, sentou-se na cama, disse-lhe estar com pressa. Admirou-se dele não estender a mão libertina, viciada nos beliscões e apalpadelas. Fitou mais uma vez o dedo grande do pé direito, achou esquisito. Tocou o corpo de Quincas. Levantou-se alarmada, tomou da mão fria. Desceu as escadas correndo, espalhou a notícia.
Filha e genro ouviam sem prazer aqueles detalhes com negra e ervas, apalpadelas e candomblé. Balançavam a cabeça, quase apressavam o santeiro, homem calmo, amigo de narrar uma história com todos os detalhes. Só ele sabia dos parentes de Quincas, revelados em noite de grande bebedeira, e por isso viera. Adotava uma fisionomia compungida para apresentar seus sentidos pêsames.
Estava na hora de Leonardo ir para a Repartição. Disse à esposa:
Vai na frente, eu passo na Repartição e não demoro a chegar. Tenho de assinar o ponto. Falo com o chefe...
Mandaram o santeiro entrar, ofereceram-lhe uma cadeira na sala. Vanda foi mudar a roupa. O santeiro contava de Quincas a Leonardo, não havia quem não gostasse dele na ladeira do Tabuão. Por que se entregara ele – homem de boa família e de posses, como o santeiro podia constatar ao ter o prazer de travar conhecimento com sua filha e seu genro – àquela vida de vagabundo? Algum desgosto? Devia ser, com certeza. Talvez a esposa o houvesse carregado de chifres, muitas vezes sucedia. E o santeiro punha os indicadores na testa, numa interrogação frascária: tinha adivinhado?
Dona Otacília, minha sogra, era uma santa mulher!
O santeiro coçou o queixo: por que então? Mas Leonardo não respondeu, foi atender Vanda, que o chamava do quarto.
É preciso avisar...
Avisar? A quem? Pra quê?
A tia Marocas e a tio Eduardo... Aos vizinhos. Convidar para o enterro...
Para que avisar logo aos vizinhos? Depois a gente conta. Senão vai ser um converseiro danado...
Mas tia Marocas...
Falo com ela e Eduardo... Depois de passar na Repartição. Anda depressa senão esse tal que veio trazer a notícia sai por aí espalhando...
Quem diria... Morrer assim, sem ninguém...
De quem a culpa? Dele mesmo, maluco...
Na sala, o santeiro admirava um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns quinze anos, senhor bem-posto, colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas. Ao lado, em moldura idêntica, o olhar acusador e a boca dura, dona Otacília, num vestido preto, de rendas. O santeiro estudou a fisionomia azeda:
Não tem cara de quem engana marido... Em compensação, devia ser um osso duro de roer... Santa mulher? Não acredito…
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’Água

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