No
mosteiro, aguardando visitantes, Nando repetia “a terra já deu
flor quando chegar aqui” enquanto via em croquis de Francisca as
mãos de Francisca alastradas de flores. E como num mistério
medieval em que um pensamento perigoso se materializa de pronto em
carne e osso, Francisca surgiu na sua frente, e uma Francisca de
cabelo soprado de vento, alegórica, uma espécie de imagem da Doçura
anunciando a Tragédia.
— Estou
aí com a camioneta de Leslie — disse Francisca. — Ele se postou
no Engenho de Nossa Senhora do O, vigiando o pai. Não arranjei outro
médico.
— Mas
o que é? De que se trata? — disse Nando.
Francisca
sorriu seu sorriso de sempre, apesar dos lábios dos pálidos.
— Desculpe
— disse Francisca. — Estou falando tudo num atropelo. Aquela
menina, Maria do Egito. A Winifred arranjou médico para fazer o
aborto, sabe? Mas Maria do Egito começou a passar mal e o tal médico
desapareceu. Será que podíamos ir lá?
— Aonde?
— disse Nando.
— À
casa dos ingleses — disse Francisca. — O aborto foi feito lá.
Era o jeito.
No
século quatorze o grande poeta não corria tal risco. Perto. As mãos
feitas sabe Deus para que gestos de ternura conduzindo o veículo e
orientando o padre temeroso da crueza da vida e mais temeroso ainda
das suavidades da vida. Estagnado. Adiara, adiara e por fim nada
dissera a d. Anselmo sobre a situação no Engenho Nossa Senhora do O
onde não havia um único padre e onde os pais queriam matar as
filhas sob o comando de estranhos deuses que imitavam a voz do Deus
cristão.
— Reze,
padre Nando — disse Francisca. — Se a hemorragia não tiver
cessado o recurso é chamar uma ambulância do Pronto-Socorro.
— Mas
um caso de aborto...
— Exatamente.
É crime. Winifred sabia disto perfeitamente mas não se conformou em
abandonar a menina a uma violência do pai.
Senhor,
por que dais tanta coragem a uma mulher e me tendes aqui trêmulo?
Será o cúmulo, se além do escândalo do túnel me pegarem a mim,
padre-guia do mosteiro, envolvido de alguma forma numa história
dessas.
— Quem
foi o médico? — disse Nando.
— Um
tal dr. Marinho, que faz esses serviços mas desaparece, como estamos
vendo, se surgem complicações.
— Um
aborto — disse Nando fazendo o sinal da cruz. — Winifred devia
ter pensado duas vezes. Um crime contra a vida.
Apesar
de estar dirigindo, Francisca voltou bruscamente o rosto para Nando.
— Ela
devia deixar Maria do Egito ser assassinada pelo pai por um crime que
não cometeu? De mais a mais, Leslie e Winifred assumiram plena
responsabilidade.
Insensivelmente
Nando falou a Francisca como padre, o que há muito tinha deixado de
fazer.
— Não
falo na responsabilidade criminal, civil, minha filha. Falo na
responsabilidade perante Deus. Não se escolhe entre vida e vida.
Toda vida é sagrada.
Francisca
o olhou de novo, agora estranhando o tom.
— Desculpe,
padre Nando, eu compreendo como a questão é muito mais complicada
do seu ponto de vista de padre católico.
Nando
via a ambulância chegando, Maria do Egito agonizante, ele a dar-lhe
a extrema-unção, Nequinho na polícia, o caso nos jornais. Tudo
isso depois do Suplemento do Túnel. Pela primeira vez se aproximava
da casa de Leslie e Winifred com horror. D. Anselmo tinha sua parte
de culpa. Por que empurrá-lo para relações leigas como Leslie e
Winifred? Ainda mais esses nórdicos para quem tudo era ação,
fazer, fazer, fazer? Por si mesmo ele jamais teria se afastado tanto
do refúgio do mosteiro. Só na hora de se afastar definitivamente. O
incidente tinha pelo menos o valor purgativo de diminuí-lo aos olhos
de Francisca. Mais ai de Nando, isto na realidade era mais uma dor, a
dor maior, acrescentada às outras. Numa curva, quando seu joelho por
acaso tocara a perna dela, Francisca a retirara vivamente. Como se
ele tivesse buscado o contato, de propósito. Como se o homem
pusilânime que ela via não pudesse deixar de ser também
tortuosamente frascário.
Foi
no entanto com extrema doçura que Francisca disse, ao parar o carro
diante da casa dos ingleses:
— Pense,
padre Nando, em como agiria nossa Teresa diante de um caso assim.
Quando
entraram, viram logo na sala, cabeça ruiva iluminada pelo abajur,
Winifred que lia um livro! Sorriu para os dois. Pela porta aberta do
quarto ao fundo, Maria do Egito. Morta? pensou Nando. E Winifred
transtornada? Bêbada talvez?
— Como
vai ela? — disse Francisca.
— Muito
melhor! — disse Winifred. — Pouco depois de você sair a
hemorragia cessou. Uf, que alívio! Acho que agora está tudo
resolvido. Desculpe, meu bem — disse a Francisca —, o susto que
lhe dei. Você foi providencial com a ideia de ir correndo buscar o
Nando. Achei que tudo ia se resolver, com você aqui, Nando.
Winifred
e Francisca foram até a cama. Da porta Nando olhou o rostinho calmo
de Maria do Egito, viu a mão esguia de Francisca que sentia sua
temperatura na testa.
— Ah,
que bom, está fresquinha — disse Francisca.
— E
dormindo profundamente — disse Winifred.
Nando
deixou-se cair numa cadeira.
— Você
também deve ter tomado um grande susto, não, Nando? — Não —
disse Francisca —, uma questãozinha de consciência, mas veio sem
hesitação, disposto a tudo.
Francisca
não estava irônica, apenas sorridente, natural. Mas Nando tinha
certeza de que microscópicos pontinhos de luz estariam dançando nos
seus olhos.
— Ah,
coitado — disse Winifred. — Logo um aborto. Vamos beber alguma
coisa.
Quando
Winifred saiu, Francisca sorriu franca, largamente. De alívio, sem
dúvida, pensou Nando. Não de verdadeira reconciliação com o homem
que vira adornando sua pusilanimidade com motivos teológicos.
— Você
falou em Teresa na hora justa — disse Nando. — Doeu mas você fez
bem. Ela estaria com Winifred. E com... com Francisca.
Francisca
continuou sorrindo.
— Sabe
que eu adoro meu nome dito por você? Fica... bento!
Agora
era troça, pensou Nando, zombaria.
Antonio
Callado, in Quarup
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