sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Uma espécie de imagem da Doçura anunciando a Tragédia

No mosteiro, aguardando visitantes, Nando repetia “a terra já deu flor quando chegar aqui” enquanto via em croquis de Francisca as mãos de Francisca alastradas de flores. E como num mistério medieval em que um pensamento perigoso se materializa de pronto em carne e osso, Francisca surgiu na sua frente, e uma Francisca de cabelo soprado de vento, alegórica, uma espécie de imagem da Doçura anunciando a Tragédia.
Estou aí com a camioneta de Leslie — disse Francisca. — Ele se postou no Engenho de Nossa Senhora do O, vigiando o pai. Não arranjei outro médico.
Mas o que é? De que se trata? — disse Nando.
Francisca sorriu seu sorriso de sempre, apesar dos lábios dos pálidos.
Desculpe — disse Francisca. — Estou falando tudo num atropelo. Aquela menina, Maria do Egito. A Winifred arranjou médico para fazer o aborto, sabe? Mas Maria do Egito começou a passar mal e o tal médico desapareceu. Será que podíamos ir lá?
Aonde? — disse Nando.
À casa dos ingleses — disse Francisca. — O aborto foi feito lá. Era o jeito.
No século quatorze o grande poeta não corria tal risco. Perto. As mãos feitas sabe Deus para que gestos de ternura conduzindo o veículo e orientando o padre temeroso da crueza da vida e mais temeroso ainda das suavidades da vida. Estagnado. Adiara, adiara e por fim nada dissera a d. Anselmo sobre a situação no Engenho Nossa Senhora do O onde não havia um único padre e onde os pais queriam matar as filhas sob o comando de estranhos deuses que imitavam a voz do Deus cristão.
Reze, padre Nando — disse Francisca. — Se a hemorragia não tiver cessado o recurso é chamar uma ambulância do Pronto-Socorro.
Mas um caso de aborto...
Exatamente. É crime. Winifred sabia disto perfeitamente mas não se conformou em abandonar a menina a uma violência do pai.
Senhor, por que dais tanta coragem a uma mulher e me tendes aqui trêmulo? Será o cúmulo, se além do escândalo do túnel me pegarem a mim, padre-guia do mosteiro, envolvido de alguma forma numa história dessas.
Quem foi o médico? — disse Nando.
Um tal dr. Marinho, que faz esses serviços mas desaparece, como estamos vendo, se surgem complicações.
Um aborto — disse Nando fazendo o sinal da cruz. — Winifred devia ter pensado duas vezes. Um crime contra a vida.
Apesar de estar dirigindo, Francisca voltou bruscamente o rosto para Nando.
Ela devia deixar Maria do Egito ser assassinada pelo pai por um crime que não cometeu? De mais a mais, Leslie e Winifred assumiram plena responsabilidade.
Insensivelmente Nando falou a Francisca como padre, o que há muito tinha deixado de fazer.
Não falo na responsabilidade criminal, civil, minha filha. Falo na responsabilidade perante Deus. Não se escolhe entre vida e vida. Toda vida é sagrada.
Francisca o olhou de novo, agora estranhando o tom.
Desculpe, padre Nando, eu compreendo como a questão é muito mais complicada do seu ponto de vista de padre católico.
Nando via a ambulância chegando, Maria do Egito agonizante, ele a dar-lhe a extrema-unção, Nequinho na polícia, o caso nos jornais. Tudo isso depois do Suplemento do Túnel. Pela primeira vez se aproximava da casa de Leslie e Winifred com horror. D. Anselmo tinha sua parte de culpa. Por que empurrá-lo para relações leigas como Leslie e Winifred? Ainda mais esses nórdicos para quem tudo era ação, fazer, fazer, fazer? Por si mesmo ele jamais teria se afastado tanto do refúgio do mosteiro. Só na hora de se afastar definitivamente. O incidente tinha pelo menos o valor purgativo de diminuí-lo aos olhos de Francisca. Mais ai de Nando, isto na realidade era mais uma dor, a dor maior, acrescentada às outras. Numa curva, quando seu joelho por acaso tocara a perna dela, Francisca a retirara vivamente. Como se ele tivesse buscado o contato, de propósito. Como se o homem pusilânime que ela via não pudesse deixar de ser também tortuosamente frascário.
Foi no entanto com extrema doçura que Francisca disse, ao parar o carro diante da casa dos ingleses:
Pense, padre Nando, em como agiria nossa Teresa diante de um caso assim.
Quando entraram, viram logo na sala, cabeça ruiva iluminada pelo abajur, Winifred que lia um livro! Sorriu para os dois. Pela porta aberta do quarto ao fundo, Maria do Egito. Morta? pensou Nando. E Winifred transtornada? Bêbada talvez?
Como vai ela? — disse Francisca.
Muito melhor! — disse Winifred. — Pouco depois de você sair a hemorragia cessou. Uf, que alívio! Acho que agora está tudo resolvido. Desculpe, meu bem — disse a Francisca —, o susto que lhe dei. Você foi providencial com a ideia de ir correndo buscar o Nando. Achei que tudo ia se resolver, com você aqui, Nando.
Winifred e Francisca foram até a cama. Da porta Nando olhou o rostinho calmo de Maria do Egito, viu a mão esguia de Francisca que sentia sua temperatura na testa.
Ah, que bom, está fresquinha — disse Francisca.
E dormindo profundamente — disse Winifred.
Nando deixou-se cair numa cadeira.
Você também deve ter tomado um grande susto, não, Nando? — Não — disse Francisca —, uma questãozinha de consciência, mas veio sem hesitação, disposto a tudo.
Francisca não estava irônica, apenas sorridente, natural. Mas Nando tinha certeza de que microscópicos pontinhos de luz estariam dançando nos seus olhos.
Ah, coitado — disse Winifred. — Logo um aborto. Vamos beber alguma coisa.
Quando Winifred saiu, Francisca sorriu franca, largamente. De alívio, sem dúvida, pensou Nando. Não de verdadeira reconciliação com o homem que vira adornando sua pusilanimidade com motivos teológicos.
Você falou em Teresa na hora justa — disse Nando. — Doeu mas você fez bem. Ela estaria com Winifred. E com... com Francisca.
Francisca continuou sorrindo.
Sabe que eu adoro meu nome dito por você? Fica... bento!
Agora era troça, pensou Nando, zombaria.
Antonio Callado, in Quarup

Nenhum comentário:

Postar um comentário