Além
do Rio Pinheiros é possível avistar uma haste cinza no campus da
USP: será a torre do relógio? Mais adiante, a Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo… Não consigo ver o edifício da FAU, mas
ele está lá, com suas rampas e ateliês e oficinas de maquete,
formando e diplomando arquitetos e urbanistas. O laguinho onde os
calouros eram batizados ainda existe? E o salão Caramelo? Vários
professores — Flavio Império, Renina Katz, Flavio Motta, Gabriel
Bolaffi, Luis Carlos Daher — desintoxicavam a mente dos calouros:
cabeças viciadas em dar respostas a questões e fórmulas de
múltipla escolha dos cursinhos e do vestibular.
Mesmo
de longe, a visão do campus me remete sem nostalgia ao tempo em que
fui arquiteto, uma profissão temporária, circunstancial. Ainda
sonhávamos com projetos dignos de habitação popular e abominávamos
os projetos de canis e pombais para o povo. Por que os arquitetos
talentosos foram excluídos dos projetos de São Paulo e de outras
cidades brasileiras?
Nas
ruas e calçadas deste bairro há um movimento alucinado de pessoas
que saem dos escritórios e caminham para restaurantes, bares,
padarias; operários comem sentados no canteiro de obras. A sirene da
viatura policial emite um som estridente; em poucos segundos o som
agudo torna-se grave e apaga-se aos poucos, deve ser o efeito
Doppler, que aprendi nas aulas de física da FAU. Outra viatura
policial passa a mil, a terceira ignora o sinal vermelho e por pouco
não atropela uma mulher idosa que segura a mão de uma menininha. A
mulher, talvez uma avó, esbraveja. Pobre avó, acuada entre o
meio-fio e a entrada de uma garagem onde um carro buzina e em seguida
o motorista sai do carro e gesticula. Agora a avó está indecisa:
não sabe se esbraveja contra o motorista do carro ou o da viatura
policial, que já sumiu.
Esta
cidade não é mais para vovós nem para netinhos, pensei. Os
motoristas não imaginam que um dia vão envelhecer e outra viatura
policial e outro carro vão acuá-los, humilhá-los, jogá-los no
meio-fio como se fossem bichos. Então a mulher idosa acomoda a
criança nos braços e se afasta para deixar o carro passar. Primeiro
os carros, depois os pedestres: assim somos mais civilizados. Não
sei se a menina está chorando, mas deve estar assustada. Um homem se
aproxima delas, a solidariedade chega tarde demais.
Escuto
também o barulho infernal de buzinas, freadas, motocicletas que
serpenteiam por uma avenida larga. Os apressados sabem que a buzina é
inútil. Então por que buzinam? Por mero exibicionismo, talvez. Ou
por hábito, um tipo de hábito irracional que parece loucura. Com
tanta buzina, parece que estamos em Lagos, Calcutá ou no Cairo. A
Lei do Silêncio foi esquecida? Quando olho para outra direção,
entre o rio e este apartamento, vejo uma praça no alto de uma
colina, uma das muitas praças de um bairro arborizado, ocupado por
mansões. Muitas estão à venda: é caro conservá-las, ou é mais
seguro morar em apartamento.
Agora
o vento dissipou as nuvens, o sol do verão ilumina as colinas que,
ao longe, formam um dos limites extremos da metrópole. Mas nem o sol
anima o Pinheiros: um canal de água pestilenta, rio morto da
metrópole.
Por
outra janela vejo uma muralha de edifícios recém-construídos. Eles
se aproximam do lugar em que escrevo; alguns, próximos da fachada
leste, ameaçam sequestrar a luz do sol matinal e lançar uma sombra
fria nesta mesa. São torres cada vez mais altas, a cem metros do
solo, um dia elas vão ocupar o lugar das mansões, das praças, das
nuvens, do céu que já não mais nos protege. Quando tudo isso
acontecer, quando todas as janelas deste quarto estiverem vedadas,
ainda assim será possível imaginar fábulas distantes no tempo e no
espaço.
Agora
mesmo, enquanto o olhar passeia pelo rio morto ou se estende até o
campus, as colinas e a muralha de concreto, sou fisgado pela memória,
que viaja para o Norte e perde-se nas margens do Negro, o rio da
infância. Este é um dos lugares da ficção: o lugar a que se
destina o viajante imóvel numa tarde barulhenta de dezembro.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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