terça-feira, 24 de setembro de 2019

Preciosidades

A programação dos canais de cinema da TV a cabo, com suas constantes repetições, nos permite rever — e rever, e rever — filmes favoritos, ou então ir revendo-os em drágeas: uma parte hoje, outra amanhã, outra no mês que vem... Estou ressaboreando pedaços do Lawrence da Arábia, do David Lean, discutivelmente a única grande produção do cinema que merece o prefixo “super” em todas as categorias. Vê-lo assim, ao fortuito, sem continuidade, só reforça aquela célebre máxima do Jean-Luc Godard que um filme precisa ter começo, meio e fim, certo, mas não necessariamente nesta ordem. Em qualquer ordem, Lawrence da Arábia é ótimo de se ver — e rever, e rever. E sempre que, prospectando os canais com o controle remoto atrás de preciosidades, dou com A casa da Rússia fico para assistir até o fim. Este é um exemplo de filme que não recebeu a atenção e os elogios que merecia, quando foi lançado. É, longe, a melhor adaptação de John Le Carré feita no cinema. Diretor: Fred Schepisi. Infelizmente, apesar de já ter visto passar os créditos umas 17 vezes, não guardei o nome do adaptador e do autor da extraordinária trilha sonora.
Sean Connery, um editor e saxofonista amador recrutado para uma missão na Rússia, é um típico personagem de Le Carré, um homem desiludido com todas as suas lealdades antigas e que acaba traindo-as por amor a uma russa. Ajuda, claro, o fato de a russa ser a Michelle Pfeiffer. O filme se passa já no ocaso da União Soviética, e o segredo que Connery é contatado para divulgar para o mundo, por um cientista russo impressionado com o seu humanismo e sua oposição aos “homens cinzentos” que, de um lado e de outro, gerenciam a guerra fria, é justamente que o poder soviético é uma mentira. A CIA reluta em aceitar a revelação porque ela também será um choque para a máquina de guerra americana, que precisa da ameaça comunista para faturar, mas concorda em participar da missão. Ninguém como Le Carré flagrou o ódio sutil na convivência dos serviços secretos americano e inglês, primitivos eficientes contra aristocratas excêntricos, e o filme também reproduz isto com perfeição. No fim Connery escolhe a russa e sua família como sua única pátria e trai para salvá-los dos homens cinzentos. Tudo isto contado por uma câmera que desliza com a mesma precisão, e arrebatamento romântico, da música. Pretendo ver de novo.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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