A
programação dos canais de cinema da TV a cabo, com suas constantes
repetições, nos permite rever — e rever, e rever — filmes
favoritos, ou então ir revendo-os em drágeas: uma parte hoje, outra
amanhã, outra no mês que vem... Estou ressaboreando pedaços do
Lawrence da Arábia, do David Lean, discutivelmente a única
grande produção do cinema que merece o prefixo “super” em todas
as categorias. Vê-lo assim, ao fortuito, sem continuidade, só
reforça aquela célebre máxima do Jean-Luc Godard que um filme
precisa ter começo, meio e fim, certo, mas não necessariamente
nesta ordem. Em qualquer ordem, Lawrence da Arábia é ótimo
de se ver — e rever, e rever. E sempre que, prospectando os canais
com o controle remoto atrás de preciosidades, dou com A casa da
Rússia fico para assistir até o fim. Este é um exemplo de
filme que não recebeu a atenção e os elogios que merecia, quando
foi lançado. É, longe, a melhor adaptação de John Le Carré feita
no cinema. Diretor: Fred Schepisi. Infelizmente, apesar de já ter
visto passar os créditos umas 17 vezes, não guardei o nome do
adaptador e do autor da extraordinária trilha sonora.
Sean
Connery, um editor e saxofonista amador recrutado para uma missão na
Rússia, é um típico personagem de Le Carré, um homem desiludido
com todas as suas lealdades antigas e que acaba traindo-as por amor a
uma russa. Ajuda, claro, o fato de a russa ser a Michelle Pfeiffer. O
filme se passa já no ocaso da União Soviética, e o segredo que
Connery é contatado para divulgar para o mundo, por um cientista
russo impressionado com o seu humanismo e sua oposição aos “homens
cinzentos” que, de um lado e de outro, gerenciam a guerra fria, é
justamente que o poder soviético é uma mentira. A CIA reluta em
aceitar a revelação porque ela também será um choque para a
máquina de guerra americana, que precisa da ameaça comunista para
faturar, mas concorda em participar da missão. Ninguém como Le
Carré flagrou o ódio sutil na convivência dos serviços secretos
americano e inglês, primitivos eficientes contra aristocratas
excêntricos, e o filme também reproduz isto com perfeição. No fim
Connery escolhe a russa e sua família como sua única pátria e trai
para salvá-los dos homens cinzentos. Tudo isto contado por uma
câmera que desliza com a mesma precisão, e arrebatamento romântico,
da música. Pretendo ver de novo.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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