quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Ninguém vai rir - 5

Sim, meu domicílio permanente é em Litomysl. Lá estão minha mãe e as lembranças de meu pai; cada vez que posso, saio de Praga e vou trabalhar e estudar em casa, na pequena moradia de mamãe. De modo que conservei o endereço dela como endereço permanente. Mas em Praga não fui capaz de encontrar um apartamento conveniente, como seria normal e necessário; moro em sublocação num bairro de subúrbio, sob os telhados, numa pequena mansarda completamente independente cuja existência escondo tanto quanto possível para evitar o encontro inútil de visitantes indesejáveis com minhas efêmeras companheiras.
Não poderia portanto pretender que minha reputação no prédio fosse exatamente das melhores. Além disso, durante minhas estadas em Litomysl, emprestara muitas vezes meu quarto a camaradas que se divertiam tanto que ninguém na casa conseguia pregar olho durante a noite. Tudo isso provocava a indignação de certos locatários, e estes faziam contra mim uma guerra surda, que se manifestava de vez em quando por advertências que o comitê da rua formulava a meu respeito, inclusive com uma queixa ao serviço de habitação.
Na época a que me refiro, Klara começava a achar cansativo sair de Celakovice para trabalhar em Praga, e tinha resolvido dormir em minha casa, a princípio timidamente e em casos excepcionais; depois deixou em minha casa um vestido, mais tarde vários vestidos, e no fim de algum tempo meus dois ternos estavam esmagados no fundo do armário e minha mansarda transformada em salão feminino.
Gostava muito de Klara; era bonita e me agradava que as pessoas virassem a cabeça para nos olhar quando saíamos juntos; tinha treze anos menos do que eu e essa circunstância só fazia aumentar meu prestígio junto aos meus alunos; numa palavra, tinha mil razões para me apegar a ela. No entanto não queria que soubessem que ela morava em minha casa. Temia que se voltassem contra meu valente proprietário, um homem idoso que se mostrava discreto e não se metia na minha vida; tremia em pensar que um dia ele pudesse vir, triste e contrariado, pedir-me para botar a moça na rua em defesa de sua boa reputação. Por isso Klara recebera instruções de não abrir a porta para ninguém.
Naquele dia estava sozinha em casa. Era um belo dia ensolarado e a mansarda estava sufocante. Ela estava deitada nua no meu divã e se dedicava a contemplar o teto.
Então começaram a tamborilar na porta.
Não havia o que temer, pois não há campainha na porta. As visitas, portanto, têm que bater. Klara não se deixou perturbar com esse barulho nem pensou em interromper sua contemplação do teto. Mas as batidas na porta não paravam; ao contrário, continuavam com uma tranquila e incompreensível perseverança. Klara acabou se enervando. Pôs-se a imaginar que atrás da porta estaria um senhor que levantava lenta e eloquentemente a gola do casaco e que em seguida iria lhe perguntar rispidamente por que ela não abria, o que escondia e se estava registrada nesse endereço. Cedeu a um sentimento de culpa, baixou os olhos que conservava sempre fixos no teto e procurou com o olhar o lugar em que deixara suas roupas. Mas as batidas eram tão obstinadas que ela, na sua confusão, só pôde encontrar minha capa pendurada na entrada. Enfiou-a e abriu.
No limiar da porta, em vez do rosto mau de um bisbilhoteiro, ela viu apenas um homenzinho que a cumprimentava:
O Sr. assistente está em casa?
Não, ele saiu!
É pena — disse o homem, e desculpou-se polidamente por incomodar Klara. — O Sr. assistente deve escrever um parecer sobre um artigo de minha autoria. Ele me prometeu e agora esse problema é muito urgente. Se a senhora permitir, gostaria de lhe deixar um recado.
Klara entregou ao homem papel e lápis e à noite pude ler que a sorte de seu artigo sobre Mikolas Ales estava em minhas mãos e que o Sr. Zaturecky esperava com respeito que eu redigisse a nota prometida. Acrescentou que voltaria a me procurar na faculdade.
Milan Kundera, in Risíveis amores

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