segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Não existe nada certo neste mundo

Não é o Al que vem vindo aí? — perguntou Tom.
Parece que é ele, sim.
Tom levantou-se e enrolou a biela e as duas metades do mancal num pedaço de pano de aniagem.
A gente tem que tomar cuidado pra arranjar uma peça bem igual.
O caminhão parou à margem da estrada e Al debruçou-se sobre a janela.
Cê demorou como o diabo. Até onde foram?
Al suspirou:
Tirou a biela?
Tirei. — Tom ergueu o embrulho de aniagem. — Está toda despedaçada.
Bem, mas não foi culpa minha — disse Al.
Não. Pra onde ocê levou o pessoal?
Qual, a gente teve uma encrenca — disse Al. — A avó começou a berrar e quando Rosasharn ouviu isso, também começou a berrar. Ela meteu a cabeça debaixo dum colchão e chorou à beça. A avó então nem se fala: deitou no chão e uivou que nem cachorro em noite de lua. Até pensei que ela tinha ficado maluca. Agora parece uma criança. Não fala com ninguém; nem parece reconhecer a gente. Fala sozinha, como se tivesse falando com o avô.
Onde estão? — perguntou Tom novamente.
Bem, a gente chegou até um acampamento. Tinha muita sombra e água encanada. Custa meio dólar por dia pra ficar lá. Mas tavam todos tão cansados e sem coragem, tão desmoralizados que resolveram ficar. A mãe diss’que era preciso por causa da avó. A gente montou a tenda Wilson e armou a nossa lona. Eu acho que a avó ficou louca.
Tom olhou o sol que desaparecia no horizonte.
Casy — disse —, alguém tem que ficar aqui com este carro, senão vão roubar ele. O senhor quer ficar?
Pois não. Eu fico.
Al trouxe um embrulho de papel do assento do caminhão.
Aqui tem um pouco de carne e pão — disse. — A mãe mandou pra vocês. Eu também trouxe uma jarra com água.
Ela não se esquece de nada — disse Casy.
Tom entrou no caminhão, ao lado de Al.
Escute — disse —, a gente volta o mais depressa possível. Mas não posso dizer com certeza quanto tempo vamos demorar.
Eu espero.
Bom. E não faça discursos pro senhor mesmo. Vamos, Al. — E o caminhão começou a rodar, crepúsculo adentro. — É um sujeito gozado — disse Tom. — Pensa em coisas esquisitas o tempo todo.
Se ocê fosse um pregador fazia a mesma coisa. O pai tá danado porque teve que pagar cinquenta cents só pra poder ficar na sombra duma árvore. Essa ele não engoliu. E ficou sentado o tempo todo xingando. Disse que não demora e é preciso pagar até pelo ar que a gente respira. Mas a mãe diss’que é preciso a gente parar num lugar assim, que tenha sombra e água, por causa da avó. — O caminhão ribombava estrada afora, e agora que estava sem a carga, todas as suas partes crepitavam e matraqueavam. Toda a carroceria rangia como se fosse desmontar. Entretanto, rodava com rapidez e leveza. O motor fazia uma balbúrdia ensurdecedora; uma fumaça azulada, de óleo queimado, ia se infiltando na cabine através das tábuas do piso.
Mais devagar — disse Tom. — Senão, acabamos com os cubos da roda. Que é que há afinal com a avó?
Não sei. Nos últimos dias ela parecia que nem tava viva; não falava com ninguém, né? É por isso que ela agora resolveu falar e gritar, pra descontar o tempo perdido. Mas quando fala, não é com ninguém. Quer dizer: parece que tá falando com o avô. Grita, chamando ele. Também parece que anda com medo. Até a gente parece que tá vendo o avô ali sentado, fazendo caretas como fazia, se coçando e ajeitando a roupa. Ela também parece que tá vendo ele ali sentado. E então fica dando bronca nele. Ah, peraí: o pai mandou te entregar vinte dólares, que diss’que não sabe de quanto ocê vai precisar. Cê já viu a mãe ir contra ele algum dia como hoje?
Não, não vi, não. Mas, te digo, escolhi uma boa hora pra minha liberdade condicional! Eu pensava chegar em casa e não fazer nada por uma porção de tempo. Só dormir e comer. E às vezes ir dançar e dormir com boas garotas. Qual, não foi nada disso!
Al disse:
Quase me esqueci. A mãe mandou te fazer uma porção de recomendações. Disse procê não beber, não discutir e não brigar. Ela diss’que tem medo que ocê volte pra prisão.
Ela já tem muita preocupação. Eu é que não vou causar mais nenhuma — prometeu Tom.
Bem, mas um copo de cerveja a gente pode tomar, não pode? Eu tô morrendo de vontade de tomar uns copos.
Não sei — disse Tom. — O pai vai ficar danado se a gente gastar dinheiro em cerveja.
Escuta, Tom, eu tenho seis dólares. A gente podia beber alguma coisa com esse dinheiro e se divertir. Ninguém sabe que tenho esse dinheiro. Puxa, a gente se divertia um bocado.
Guarda o teu dinheiro. Quando a gente chegar lá embaixo, na costa, a gente pode se divertir. Talvez quando a gente arrumar trabalho... — Endireitou-se no assento. — Não sabia que ocê perdia a cabeça assim tão fácil. Pensei que ocê tivesse mais responsável.
Que que ocê quer? Eu não conheço ninguém aqui... Se andar muito tempo ainda por aí, acabo me casando. Mas antes quero me divertir à beça lá na Califórnia.
Sim, se a gente chegar na Califórnia — disse Tom.
Cê acha que a gente pode não chegar?
Não existe nada certo neste mundo.
Quando ocê matou aquele camarada, cê... cê... sonhou com ele mais tarde, ou qualquer coisa assim, hem? Cê pensava naquilo? Pensava muito?
Não.
Não é possível. Cê se lembrava.
Tá certo. Me lembrava às vezes. Ficava aborrecido porque ele tinha morrido.
E... e cê não tava arrependido? Não tá arrependido ainda?
Não. Eu cumpri a pena. Acho que é o bastante.
Era muito ruim lá?
Vou te dizer uma coisa. Já cumpri a minha pena e agora acabou-se. Não quero estar falando sempre desse negócio. Aí está o rio. É só atravessar e estamos na cidade. Vamo achar uma boa biela e o resto que se dane.
A mãe gosta de ocê como quê! — disse Al. — Quando ocê tava preso ela vivia numa tristeza danada. Mas não dizia nada pra ninguém; era como se chorasse só por dentro. Mas todo mundo sabia que ela estava sofrendo.
Tom puxou o boné sobre os olhos.
Escuta aqui, Al. Quem sabe a gente podia mudar de conversa agora?
Tô só te contando o que a mãe fazia.
Eu sei, eu sei. Mas não quero falar nisso agora. Prefiro... prefiro pôr um pé na frente do outro e seguir adiante.
Al recolheu-se a um silêncio ofendido.
Só queria te contar... — repetiu daí a um minuto.
Tom olhou-o, e Al fixou os olhos para a frente. O caminhão ribombava com monotonia. Os lábios compridos de Tom esticaram-se sobre seus dentes, e ele riu com brandura.
Eu sei, Al — disse. — Talvez eu ainda esteja debaixo da influência da prisão. Um dia, eu vou te falar sobre isso. É natural que ocê teja interessado. Mas eu... é engraçado... eu acho que é melhor eu tratar de esquecer isso por algum tempo, sabe? Mais tarde, talvez vá ser diferente. Mas agora, quando penso nisso, tudo me gira na cabeça. Quero te dizer uma coisa, Al... a prisão é uma coisa que foi feita pra deixar a gente louca aos poucos. Tá compreendendo? E a pessoa fica louca mesmo. Às vezes, à noite, os que ficaram loucos começam a gritar, e a gente pensa que é a gente mesmo que tá gritando, e às vezes é isso mesmo.
Al disse:
Ah, eu não quero mais falar sobre isso, Tom.
Trinta dias ainda passam — disse Tom. — Cento e oitenta dias, ainda vá lá. Mas mais que um ano... não sei, não. É pior que qualquer outra coisa do mundo. É uma coisa enlouquecedora, completamente enlouquecedora, essa de fechar alguém numa cadeia. Ora, que vá pro diabo! Não quero mais falar nisso. Olha aí, ali adiante, o sol batendo nas janelas das casas.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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