Feito
sobre um desenho de Carlos Scliar
Meninas
sozinhas, perdidas no mundo e dentro de si: eu gostaria tocar-lhes
xilofone nas clavículas, harpa nas costelas, cuíca na caveira e
gostaria também de lhes pedir emprestados os fêmures e com um fazer
uma flauta, e com o outro bater um fantástico tambor feito da pele
dos seus ventres, bem esticada sobre sua ossada pélvica. E gostaria
que o som saísse do xilofone e da harpa e da cuíca e da flauta e do
tambor dissesse Hitler!
Meninas
sozinhas, perdidas no mundo e dentro de si: ó abstratas, mímicas
ganglionares! - feixes de ossos armados para a fogueira de todas as
esperanças, todos os votos, todos os desejos. Eu gostaria...
Por
vós clamamos, por vós suspiramos, ó degradadas filhas de Eva,
macérrimas torres de fome e solidão, meninas de eterna impuberdade,
perdidas na sombra, perdidas na noite, perdidas no mundo e em si
mesmas perdidas.
Aparentemente
meninas: conservais no rosto a perene crispação de um sorriso. Mas
não é sorriso, é magreza. Não vos foi dado lábios nem para
sorrir nem para beijar. Tendes a boca negra como uma cratera e vosso
mau hálito suspira: amor! Sois opiladas e sedentas da poesia da
palavra que é a Poesia: hormônio. Trazeis ventres inchados de
entranhas vazias, onde afia as presas um filho sem pai, que traz um
nome: Fome, Hambre, Faim, Hunger, Fame, - Ô Femme, monceau
d'entrailles, pitié douce...
Pedis
esmolas, pedis pão, pedis calor. Ganhais a moeda, a côdea, o chão.
Nem a tepidez das lágrimas conheceis. Mas caçam-vos os lobos
humanos, e desprezam-vos os donos da vida. Em seus sapatos lustrosos
vosso rosto deformado se reflete quando ante eles vos inclinais sob a
ameaça do chicote.
Meninas
que sois a inocência do mundo, perdidas no mundo e dentro de vós.
Meninas cadaverosas, errantes, nas ruas de Varsóvia, errantes nas
ruas de Berlim, errantes nas ruas de Xangai, errantes nas ruas do
mundo, salvas dos destroços para as escadarias das igrejas,
cariátides primitivas nascidas de cinzel sem gume, pobres
odontomoças, furbas e tísicas, tristes e afônicas.
Meninas
sozinhas perdidas no mundo e dentro de si. Há homens gordos que vos
ignoram, homens baixos que vos ignoram, homens magros que vos
ignoram, homens com bigode que vos ignoram, homens com óculos que
vos ignoram, homens que se vestem de negro, pardo, verde e rosa que
vos ignoram. São homens os que vos ignoram...
Ah,
arcas de descrença, cântaros de fel, estrelas de podridão, púcaros
de bacilos, pântanos de desejos, cloacas de abandono, cemitério de
anelos, castelos de loucura, museus de horrores, templos de lues, - ó
meninas perdidas no mundo e dentro de si! Meninas sozinhas, perdidas
no mundo e dentro de si.
Meninas
sozinhas, meninas perdidas, perdidas sozinhas, sozinhas no mundo,
meninas imundas, sozinhas no mundo, meninas imundas perdidas nas
fossas do mundo...
Tende
piedade de nós!
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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