sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Meninas sozinhas perdidas no mundo e dentro de si

Feito sobre um desenho de Carlos Scliar

Meninas sozinhas, perdidas no mundo e dentro de si: eu gostaria tocar-lhes xilofone nas clavículas, harpa nas costelas, cuíca na caveira e gostaria também de lhes pedir emprestados os fêmures e com um fazer uma flauta, e com o outro bater um fantástico tambor feito da pele dos seus ventres, bem esticada sobre sua ossada pélvica. E gostaria que o som saísse do xilofone e da harpa e da cuíca e da flauta e do tambor dissesse Hitler!
Meninas sozinhas, perdidas no mundo e dentro de si: ó abstratas, mímicas ganglionares! - feixes de ossos armados para a fogueira de todas as esperanças, todos os votos, todos os desejos. Eu gostaria...
Por vós clamamos, por vós suspiramos, ó degradadas filhas de Eva, macérrimas torres de fome e solidão, meninas de eterna impuberdade, perdidas na sombra, perdidas na noite, perdidas no mundo e em si mesmas perdidas.
Aparentemente meninas: conservais no rosto a perene crispação de um sorriso. Mas não é sorriso, é magreza. Não vos foi dado lábios nem para sorrir nem para beijar. Tendes a boca negra como uma cratera e vosso mau hálito suspira: amor! Sois opiladas e sedentas da poesia da palavra que é a Poesia: hormônio. Trazeis ventres inchados de entranhas vazias, onde afia as presas um filho sem pai, que traz um nome: Fome, Hambre, Faim, Hunger, Fame, - Ô Femme, monceau d'entrailles, pitié douce...
Pedis esmolas, pedis pão, pedis calor. Ganhais a moeda, a côdea, o chão. Nem a tepidez das lágrimas conheceis. Mas caçam-vos os lobos humanos, e desprezam-vos os donos da vida. Em seus sapatos lustrosos vosso rosto deformado se reflete quando ante eles vos inclinais sob a ameaça do chicote.
Meninas que sois a inocência do mundo, perdidas no mundo e dentro de vós. Meninas cadaverosas, errantes, nas ruas de Varsóvia, errantes nas ruas de Berlim, errantes nas ruas de Xangai, errantes nas ruas do mundo, salvas dos destroços para as escadarias das igrejas, cariátides primitivas nascidas de cinzel sem gume, pobres odontomoças, furbas e tísicas, tristes e afônicas.
Meninas sozinhas perdidas no mundo e dentro de si. Há homens gordos que vos ignoram, homens baixos que vos ignoram, homens magros que vos ignoram, homens com bigode que vos ignoram, homens com óculos que vos ignoram, homens que se vestem de negro, pardo, verde e rosa que vos ignoram. São homens os que vos ignoram...
Ah, arcas de descrença, cântaros de fel, estrelas de podridão, púcaros de bacilos, pântanos de desejos, cloacas de abandono, cemitério de anelos, castelos de loucura, museus de horrores, templos de lues, - ó meninas perdidas no mundo e dentro de si! Meninas sozinhas, perdidas no mundo e dentro de si.
Meninas sozinhas, meninas perdidas, perdidas sozinhas, sozinhas no mundo, meninas imundas, sozinhas no mundo, meninas imundas perdidas nas fossas do mundo...
Tende piedade de nós!
Vinicius de Moraes, in Prosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário