terça-feira, 17 de setembro de 2019

Encontros e encantos - Guimarães Rosa

[...] A construção de um lugar fantástico
A palavra “sertão” é curiosa. A sonoridade sugere o verbo “ser” numa dimensão empolada. Ser tão, existir tanto. Os portugueses levaram a palavra para África e tentaram nomear assim a paisagem da savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos escritos coloniais antigos se pode encontrar o termo “sertão”. Quase ninguém hoje, em Moçambique e Angola, reconhece o seu significado.
João Guimarães Rosa criou este lugar fantástico, e fez dele uma espécie de lugar de todos os lugares. O sertão e as veredas de que ele fala não são da ordem da geografia. O sertão é um mundo construído na linguagem. “O sertão”, diz ele, “está dentro de nós.” Rosa não escreve sobre o sertão. Ele escreve como se ele fosse o sertão.
Em Moçambique nós vivíamos e vivemos ainda o momento épico de criar um espaço que seja nosso, não por tomada de posse, mas porque nele podemos encenar a ficção de nós mesmos, enquanto criaturas portadoras de História e fazedoras de futuro. Era isso a independência nacional, era isso a utopia de um mundo sonhado.

A instauração de um outro tempo
Já vimos que o sertão é o não-território. Veremos que o seu tempo não é o vivido mas o sonhado. O narrador do Grande sertão: veredas diz: “Estas coisas de que me lembro se passaram tempos depois”. E ele poderia dizer de outro modo: as coisas importantes passam sempre para além do tempo.
O que Rosa perseguiu na escrita foi (estou citando) “essa coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, a que chamamos de ‘realidade’, e que é a gente mesmo, o mundo, a vida”. A transgressão poética é o único modo de escaparmos à ditadura da realidade. Sabendo que a realidade é uma espécie de recinto prisional fechado com a chave da razão e a porta do bom-senso [...].
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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