[...] A
construção de um lugar fantástico
A
palavra “sertão” é curiosa. A sonoridade sugere o verbo “ser”
numa dimensão empolada. Ser tão, existir tanto. Os portugueses
levaram a palavra para África e tentaram nomear assim a paisagem da
savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos
escritos coloniais antigos se pode encontrar o termo “sertão”.
Quase ninguém hoje, em Moçambique e Angola, reconhece o seu
significado.
João
Guimarães Rosa criou este lugar fantástico, e fez dele uma espécie
de lugar de todos os lugares. O sertão e as veredas de que ele fala
não são da ordem da geografia. O sertão é um mundo construído na
linguagem. “O sertão”, diz ele, “está dentro de nós.” Rosa
não escreve sobre o sertão. Ele escreve como se ele fosse o sertão.
Em
Moçambique nós vivíamos e vivemos ainda o momento épico de criar
um espaço que seja nosso, não por tomada de posse, mas porque nele
podemos encenar a ficção de nós mesmos, enquanto criaturas
portadoras de História e fazedoras de futuro. Era isso a
independência nacional, era isso a utopia de um mundo sonhado.
A
instauração de um outro tempo
Já
vimos que o sertão é o não-território. Veremos que o seu tempo
não é o vivido mas o sonhado. O narrador do Grande sertão:
veredas diz: “Estas coisas de que me lembro se passaram tempos
depois”. E ele poderia dizer de outro modo: as coisas importantes
passam sempre para além do tempo.
O
que Rosa perseguiu na escrita foi (estou citando) “essa coisa
movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, a que
chamamos de ‘realidade’, e que é a gente mesmo, o mundo, a
vida”. A transgressão poética é o único modo de escaparmos à
ditadura da realidade. Sabendo que a realidade é uma espécie de
recinto prisional fechado com a chave da razão e a porta do
bom-senso [...].
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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