– Quer
dizer que também entrou na compulsória?
– Há
um bom tempo.
– O
que anda fazendo?
– Nada,
já te disse.
– O
que andava?
– Conferia
números num escritório. Números, o dia inteiro. Colunas e mais
colunas.
– Quem
diria que a gente iria acabar assim? Tudo parecia tão promissor nos
Abertos Oitenta.
– Murcharam
rapidamente. Teve gente que nem percebeu.
– Temos
discutido o assunto, Souza. Estamos chegando à conclusão que nos
deixamos enganar. No fundo, era previsível o que viria. Quantos
homens da antiga ditadura não continuaram nos postos?
– Você
disse: temos discutido?
– Um
pequeno grupo. Na casa de um, na casa de outro. É o jeito de
mantermos as cabeças em forma, não perdermos o pé. É difícil, as
pessoas andam espantadas. Ninguém quer saber de mais nada. O que
vale é o dia a dia. Só se pensa na sobrevivência.
– Acredita
se eu te disser que não converso a sério há uns cinco anos?
– Claro,
aconteceu comigo. Meu silêncio um dia explodiu na minha cara.
– De
vez em quando falo com um sobrinho meu. Tem vinte e três anos e é
capitão do Novo Exército. Mas não dá para a gente se entender.
Ele me irrita. E me faz sentir safado. Pode ser? Me sinto corrupto
porque aceito umas fichas extras para a água.
– Imagine
se umas fichas de água tornam alguém corrupto, Souza? Isso não dá
nem para arranhar a honestidade. Você sempre foi escrupuloso demais.
Tinha noções rígidas, antiquadas, de certo e errado. Andava
devagar.
– Era
o meu jeito.
– Se
somos corruptos por causa de umas fichinhas, imagine aquela gente
toda? O que dizer do Grupo dos Oito? E a Ala Asa de Galinha? E o
Conjunto Pop?
– Fico
abismado com tudo que fizeram, sem que houvesse uma revolução.
– Eu
não. O que me impressiona é que essa gente nunca teve medo do
julgamento da história...
– Julgamento
da história? Aqueles homens pretenderam eliminar a história,
tentando apagar o futuro. Para que não sejam lembrados como novos
Átilas, os devastadores. Se acreditaram tão poderosos que julgaram
poder cancelar a memória do povo.
– Ao
menos, fizeram tudo. Quem penetra no prédio da Memória Nacional?
– Até
que dá para penetrar. Mas quem garante o que está lá? Não será
um prédio vazio?
– Nem
os bárbaros causaram tanto estrago.
– Os
bárbaros não tocavam nos templos. E as bibliotecas, os manuscritos
estavam nos templos. Eles tinham medo dos deuses e não violavam os
santuários. As escolas dos sacerdotes continuaram funcionando. Mas
agora. Tudo começou na grande ditadura com as reformas de ensino, as
dificuldades para estudar, o analfabetismo grassando. Tentou-se
consertar a situação nos Abertos Oitenta. Nem deu tempo para
respirar. Quando vimos, tinham-se acabado. Estava instalada a Grande
Locupletação.
– Fecharam
nossos olhos durante os anos abertos.
– É
trocadilho?
– Coincidência.
Estávamos iludidos, não prestamos atenção às coisas que
aconteciam.
– Não
se esqueça de que aconteciam secretamente. O Esquema decidia a
portas fechadas. De repente, vinha uma campanha de preparação.
Algumas semanas de amortecimento e ficávamos anestesiados. Por oito
anos abastecemos o mundo de madeira. Convencidos de que não havia
problemas, aceitamos que vendessem pedaços da Amazônia. Pequenos
trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se
alterassem os ecossistemas. Até que, um dia, as fotos tiradas pelos
satélites revelaram a devastação. Todo o miolo da floresta
dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos o
deserto tomou conta.
– O
Esquema era inteligente. Negava, negava e agia ocultamente. Quando se
viu, estavam no chão 250 milhões de hectares de florestas. Como
nunca mais há de haver outra.
– E
continuamos endividados.
– Mas
ganhamos a Nona Maravilha.
– Ganhamos
também tempestades de areia dignas de países desenvolvidos. Não
temos mais de invejar os furacões norte-americanos. As tempestades
dizimaram o Maranhão e o Piauí. O deserto avançou para o mar.
– Sergipe
sofreu duas tempestades de lama, Aracaju foi soterrada. O mar, lá,
tem ondas de trinta, quarenta metros.
– Furioso.
Tão furioso quanto o Esquema quando os grupos de defesa do meio
fizeram uma denúncia internacional. O Esquema ficou desmascarado.
– E
se importou? Estava todo mundo ganhando. O escândalo que foi o Grupo
dos Oito assinando concessões para as madeireiras estrangeiras! Oito
pessoas ganharam mais dinheiro que toda a população em dez anos de
trabalho.
– Os
jornais falaram.
– Logo
se calaram.
– Claro...
– E
a Ala Asa de Galinha?
– Estava
sempre debaixo de asa do presidente. O povo chamava de pintinhos. De
pintinhos não tinham nada. Eram galos ladrões.
– Entregaram
tudo. Aí estão as reservas que não deixam ninguém mentir.
– Mas
o Esquema negava. Nega ainda. Aliás, não precisa negar, não se
fala mais nesses assuntos.
– Todo
mundo está preocupado com viver, arranjar um buraco para morar, um
prato de comida.
– Tinha
ainda o Conjunto Pop. Tocava música estrangeira. Obrigou a indústria
nacional a dançar ao som das multinacionais.
– Será
que eles estão vivos, Souza?
– Ah,
uma boa parte já se foi. Eram homens de sessenta e cinco, setenta
anos. Aferrados ao poder, deslumbrados com o mando, alucinados pelo
lucro.
– E
eram tão poucos.
– Mas
tão fortes.
– E
inteligentes.
– Você
tem alguma esperança, Tadeu?
– Ando
confuso. Perdido.
– Acho
a minha teoria provável. Sabe? Acabando com tudo, eles estariam
salvos. Acreditavam que, eliminando o futuro, deles não se guardaria
nenhuma imagem. Esquecem a tradição oral. Proibiram os livros,
cassaram os cientistas, expulsaram os professores, prenderam os
pensadores. Parece até complô de nível mundial. Uma divisão do
mundo moderno acertada entre as grandes nações e os amaciados dos
países subdesenvolvidos.
– Pois
para mim parece ficção científica. São Paulo fechado, dividido em
Distritos, permissões para circular, fichas magnetizadas para água,
uma superpolícia como os Civiltares, comidas produzidas em
laboratórios, a vida metodizada, racionalizada.
– Tem
razão. Vivemos ficção científica porque vinte ou trinta pessoas,
numa época que o povo, sempre gozador, chamou de Era da Grande
Locupletação, resolveram ter lucro usando poder. Ficção
científica ridícula.
– Como
ridícula?
– Lembra-se
de quando líamos os livros de Clark, Asimov, Bradbury, Vogt,
Vonnegut, Wul, Miller, Wyndham, Heinlein? Eram supercivilizações,
tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo – ainda que
monótono – bem-estar. E, aqui, o que há? Um país subdesenvolvido
vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um país
incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O
que há em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos.
Favelados, migrantes, gente esfomeada, doentes, molambentos que vão
terminar invadindo a cidade. Eles não se aguentam além das cercas
limites. Não há o que comer!
– Bom,
Tadeu. Sua cabeça continua igual. Pensei que você estava derrotado.
Vejo tua cabeça funcionando, funcionando. Speed. Era o teu apelido.
Speed. Por causa da tua cabeça, a mil por hora. Foi o tempo em que
palavras inglesas substituíam tudo.
– Vamos
tomar café? Você tem ficha?
– Gasto
a de amanhã...
– Quando
olho essas cartelinhas de fichas, tenho a impressão de cartelas de
anticoncepcionais. O dia determinado para cada café. Aonde chegamos,
hein? E gente como nós tem culpa, Souza!
– Espera
lá. Se aposentaram a gente, foi por alguma coisa.
– Ficamos
assustados com a aposentadoria. Recuamos. A mim custou um bom tempo
para recuperar a normalidade. Eu não conseguia emprego em lugar
nenhum. Os meninos estavam grandes, foram trabalhar. Vendi a casa,
fui para um apartamentinho. Diminuí gradualmente o nível de vida.
– Quem
não diminuiu? O nível neste país ficou abaixo do nível.
– Sempre
ruim para piadas, hein, Souza? Você era um chato. Só contava piada
sem graça.
Serviram
as xícaras de café. Pó solúvel ralo, meia colher de açúcar para
cada um. Ao menos, quase todo mundo deixou de comer açúcar, coisa
desnecessária. Havia uma porção de garçonetes. Uma colocava o
pires, outra a xícara, a terceira despejava a dose exata de açúcar,
outra o café, outra a água.
Elas
se acotovelavam, davam encontrões por dentro do balcão. É a
superespecialização. A fórmula que o Esquema encontrou para
combater o desemprego foi a subdivisão e ampliação de cargos.
Agora, diz o Tadeu que isso deve acabar. “No mês que vem, só vai
ser duas xícaras por semana para cada pessoa”, avisou uma loirinha
sem dentes.
– Sabe
o que é? Havia gente preocupada. Associações por toda a parte.
Grupos que defendiam os rios, organizações contra a proliferação
de hidroelétricas desatinadas, os heroicos combatentes contra o
Reator de Angra...
– Soube
que morreram todos.
– E,
no fim, o Reator também. Está lá, afundado. Fui ver. Atração
turística. Parece um navio adernado, metade dentro da água, metade
fora. Coisa esquisitíssima, Souza. Um amontoado gigantesco de
concreto afundado na terra.
– Monumento?
– Ao
imediatismo...
– Não
quero ver. Assim como a Casa dos Vidros de Água.
– A
Casa dos Vidros é a maior prova contra o Esquema. E eles deixam.
– Às
vezes duvido que exista gente por trás do Esquema. Esquema, Esquema,
ouvimos falar. Há muito que o velho Caldeira está inválido e
continua como presidente.
– Temos
de marcar um encontro. Quero te mostrar uma coisa. Aquele nosso
caderninho. Guardo há vinte e cinco anos.
– Meu
Deus, tinha me esquecido. Os nossos caderninhos.
– O
caderninho vai te deixar emocionado, se te conheço.
– Ah,
que história...
Atravessamos
a rua, vagarosamente. As pessoas à nossa volta também não se
apressavam. Pareciam sem reação, sem reflexos. Não parecem, são.
De repente, quis mostrar ao Tadeu. Talvez pudesse me ajudar a
encontrar um significado. O meu furo na mão. Ele vai entender o meu
orgulho.
– Olhe
para o chão, Tadeu. O que está vendo?
– A
sombra da tua mão.
– Olha
bem.
– Tem
um círculo de luz no meio.
– O
que acha?
– É
um furo na tua mão! Veja só!
– É
isso!
– Faz
tempo?
– Uma
semana.
– Não
é o primeiro que vejo.
– Não?
– Tem
outros. Dói? Incomoda?
– Nada.
– Redondinho,
perfeito. Mas tem uma diferença. As coisas que aparecem são
desagradáveis. Os carecas, os que têm a pele caindo, os olhos
inflamados, os surdos. Vi gente que veio do campo sem um pelo no
corpo, o nariz corroído por inseticidas, ouvidos purgando, gente que
perdeu o controle motor. E os que andam com o pulmão artificial às
costas, como os carros que usavam gasogênio na primeira guerra
mundial? O seu furo é diferente. Bonitinho.
– Te
mostrei por causa da sombra. Acha que esse círculo de luz pode
significar alguma coisa?
– Não
exagera, Souza. Para não entender, basta o furo.
– Tenho
certeza que representa.
– Em
nosso tempo, você andou numa fase de misticismo. Vai ver renasceu.
Bem, a conversa está boa, mas preciso voltar. O elevador está
sozinho.
– Nos
encontramos de novo?
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não Verás país nenhum
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