domingo, 15 de setembro de 2019

Dois aposentados prematuramente conversam. Quem diria que tudo ia acabar assim, num clima de ridícula e subdesenvolvida ficção científica?

Quer dizer que também entrou na compulsória?
Há um bom tempo.
O que anda fazendo?
Nada, já te disse.
O que andava?
Conferia números num escritório. Números, o dia inteiro. Colunas e mais colunas.
Quem diria que a gente iria acabar assim? Tudo parecia tão promissor nos Abertos Oitenta.
Murcharam rapidamente. Teve gente que nem percebeu.
Temos discutido o assunto, Souza. Estamos chegando à conclusão que nos deixamos enganar. No fundo, era previsível o que viria. Quantos homens da antiga ditadura não continuaram nos postos?
Você disse: temos discutido?
Um pequeno grupo. Na casa de um, na casa de outro. É o jeito de mantermos as cabeças em forma, não perdermos o pé. É difícil, as pessoas andam espantadas. Ninguém quer saber de mais nada. O que vale é o dia a dia. Só se pensa na sobrevivência.
Acredita se eu te disser que não converso a sério há uns cinco anos?
Claro, aconteceu comigo. Meu silêncio um dia explodiu na minha cara.
De vez em quando falo com um sobrinho meu. Tem vinte e três anos e é capitão do Novo Exército. Mas não dá para a gente se entender. Ele me irrita. E me faz sentir safado. Pode ser? Me sinto corrupto porque aceito umas fichas extras para a água.
Imagine se umas fichas de água tornam alguém corrupto, Souza? Isso não dá nem para arranhar a honestidade. Você sempre foi escrupuloso demais. Tinha noções rígidas, antiquadas, de certo e errado. Andava devagar.
Era o meu jeito.
Se somos corruptos por causa de umas fichinhas, imagine aquela gente toda? O que dizer do Grupo dos Oito? E a Ala Asa de Galinha? E o Conjunto Pop?
Fico abismado com tudo que fizeram, sem que houvesse uma revolução.
Eu não. O que me impressiona é que essa gente nunca teve medo do julgamento da história...
Julgamento da história? Aqueles homens pretenderam eliminar a história, tentando apagar o futuro. Para que não sejam lembrados como novos Átilas, os devastadores. Se acreditaram tão poderosos que julgaram poder cancelar a memória do povo.
Ao menos, fizeram tudo. Quem penetra no prédio da Memória Nacional?
Até que dá para penetrar. Mas quem garante o que está lá? Não será um prédio vazio?
Nem os bárbaros causaram tanto estrago.
Os bárbaros não tocavam nos templos. E as bibliotecas, os manuscritos estavam nos templos. Eles tinham medo dos deuses e não violavam os santuários. As escolas dos sacerdotes continuaram funcionando. Mas agora. Tudo começou na grande ditadura com as reformas de ensino, as dificuldades para estudar, o analfabetismo grassando. Tentou-se consertar a situação nos Abertos Oitenta. Nem deu tempo para respirar. Quando vimos, tinham-se acabado. Estava instalada a Grande Locupletação.
Fecharam nossos olhos durante os anos abertos.
É trocadilho?
Coincidência. Estávamos iludidos, não prestamos atenção às coisas que aconteciam.
Não se esqueça de que aconteciam secretamente. O Esquema decidia a portas fechadas. De repente, vinha uma campanha de preparação. Algumas semanas de amortecimento e ficávamos anestesiados. Por oito anos abastecemos o mundo de madeira. Convencidos de que não havia problemas, aceitamos que vendessem pedaços da Amazônia. Pequenos trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se alterassem os ecossistemas. Até que, um dia, as fotos tiradas pelos satélites revelaram a devastação. Todo o miolo da floresta dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos o deserto tomou conta.
O Esquema era inteligente. Negava, negava e agia ocultamente. Quando se viu, estavam no chão 250 milhões de hectares de florestas. Como nunca mais há de haver outra.
E continuamos endividados.
Mas ganhamos a Nona Maravilha.
Ganhamos também tempestades de areia dignas de países desenvolvidos. Não temos mais de invejar os furacões norte-americanos. As tempestades dizimaram o Maranhão e o Piauí. O deserto avançou para o mar.
Sergipe sofreu duas tempestades de lama, Aracaju foi soterrada. O mar, lá, tem ondas de trinta, quarenta metros.
Furioso. Tão furioso quanto o Esquema quando os grupos de defesa do meio fizeram uma denúncia internacional. O Esquema ficou desmascarado.
E se importou? Estava todo mundo ganhando. O escândalo que foi o Grupo dos Oito assinando concessões para as madeireiras estrangeiras! Oito pessoas ganharam mais dinheiro que toda a população em dez anos de trabalho.
Os jornais falaram.
Logo se calaram.
Claro...
E a Ala Asa de Galinha?
Estava sempre debaixo de asa do presidente. O povo chamava de pintinhos. De pintinhos não tinham nada. Eram galos ladrões.
Entregaram tudo. Aí estão as reservas que não deixam ninguém mentir.
Mas o Esquema negava. Nega ainda. Aliás, não precisa negar, não se fala mais nesses assuntos.
Todo mundo está preocupado com viver, arranjar um buraco para morar, um prato de comida.
Tinha ainda o Conjunto Pop. Tocava música estrangeira. Obrigou a indústria nacional a dançar ao som das multinacionais.
Será que eles estão vivos, Souza?
Ah, uma boa parte já se foi. Eram homens de sessenta e cinco, setenta anos. Aferrados ao poder, deslumbrados com o mando, alucinados pelo lucro.
E eram tão poucos.
Mas tão fortes.
E inteligentes.
Você tem alguma esperança, Tadeu?
Ando confuso. Perdido.
Acho a minha teoria provável. Sabe? Acabando com tudo, eles estariam salvos. Acreditavam que, eliminando o futuro, deles não se guardaria nenhuma imagem. Esquecem a tradição oral. Proibiram os livros, cassaram os cientistas, expulsaram os professores, prenderam os pensadores. Parece até complô de nível mundial. Uma divisão do mundo moderno acertada entre as grandes nações e os amaciados dos países subdesenvolvidos.
Pois para mim parece ficção científica. São Paulo fechado, dividido em Distritos, permissões para circular, fichas magnetizadas para água, uma superpolícia como os Civiltares, comidas produzidas em laboratórios, a vida metodizada, racionalizada.
Tem razão. Vivemos ficção científica porque vinte ou trinta pessoas, numa época que o povo, sempre gozador, chamou de Era da Grande Locupletação, resolveram ter lucro usando poder. Ficção científica ridícula.
Como ridícula?
Lembra-se de quando líamos os livros de Clark, Asimov, Bradbury, Vogt, Vonnegut, Wul, Miller, Wyndham, Heinlein? Eram supercivilizações, tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo – ainda que monótono – bem-estar. E, aqui, o que há? Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um país incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O que há em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes, gente esfomeada, doentes, molambentos que vão terminar invadindo a cidade. Eles não se aguentam além das cercas limites. Não há o que comer!
Bom, Tadeu. Sua cabeça continua igual. Pensei que você estava derrotado. Vejo tua cabeça funcionando, funcionando. Speed. Era o teu apelido. Speed. Por causa da tua cabeça, a mil por hora. Foi o tempo em que palavras inglesas substituíam tudo.
Vamos tomar café? Você tem ficha?
Gasto a de amanhã...
Quando olho essas cartelinhas de fichas, tenho a impressão de cartelas de anticoncepcionais. O dia determinado para cada café. Aonde chegamos, hein? E gente como nós tem culpa, Souza!
Espera lá. Se aposentaram a gente, foi por alguma coisa.
Ficamos assustados com a aposentadoria. Recuamos. A mim custou um bom tempo para recuperar a normalidade. Eu não conseguia emprego em lugar nenhum. Os meninos estavam grandes, foram trabalhar. Vendi a casa, fui para um apartamentinho. Diminuí gradualmente o nível de vida.
Quem não diminuiu? O nível neste país ficou abaixo do nível.
Sempre ruim para piadas, hein, Souza? Você era um chato. Só contava piada sem graça.
Serviram as xícaras de café. Pó solúvel ralo, meia colher de açúcar para cada um. Ao menos, quase todo mundo deixou de comer açúcar, coisa desnecessária. Havia uma porção de garçonetes. Uma colocava o pires, outra a xícara, a terceira despejava a dose exata de açúcar, outra o café, outra a água.
Elas se acotovelavam, davam encontrões por dentro do balcão. É a superespecialização. A fórmula que o Esquema encontrou para combater o desemprego foi a subdivisão e ampliação de cargos. Agora, diz o Tadeu que isso deve acabar. “No mês que vem, só vai ser duas xícaras por semana para cada pessoa”, avisou uma loirinha sem dentes.
Sabe o que é? Havia gente preocupada. Associações por toda a parte. Grupos que defendiam os rios, organizações contra a proliferação de hidroelétricas desatinadas, os heroicos combatentes contra o Reator de Angra...
Soube que morreram todos.
E, no fim, o Reator também. Está lá, afundado. Fui ver. Atração turística. Parece um navio adernado, metade dentro da água, metade fora. Coisa esquisitíssima, Souza. Um amontoado gigantesco de concreto afundado na terra.
Monumento?
Ao imediatismo...
Não quero ver. Assim como a Casa dos Vidros de Água.
A Casa dos Vidros é a maior prova contra o Esquema. E eles deixam.
Às vezes duvido que exista gente por trás do Esquema. Esquema, Esquema, ouvimos falar. Há muito que o velho Caldeira está inválido e continua como presidente.
Temos de marcar um encontro. Quero te mostrar uma coisa. Aquele nosso caderninho. Guardo há vinte e cinco anos.
Meu Deus, tinha me esquecido. Os nossos caderninhos.
O caderninho vai te deixar emocionado, se te conheço.
Ah, que história...
Atravessamos a rua, vagarosamente. As pessoas à nossa volta também não se apressavam. Pareciam sem reação, sem reflexos. Não parecem, são. De repente, quis mostrar ao Tadeu. Talvez pudesse me ajudar a encontrar um significado. O meu furo na mão. Ele vai entender o meu orgulho.
Olhe para o chão, Tadeu. O que está vendo?
A sombra da tua mão.
Olha bem.
Tem um círculo de luz no meio.
O que acha?
É um furo na tua mão! Veja só!
É isso!
Faz tempo?
Uma semana.
Não é o primeiro que vejo.
Não?
Tem outros. Dói? Incomoda?
Nada.
Redondinho, perfeito. Mas tem uma diferença. As coisas que aparecem são desagradáveis. Os carecas, os que têm a pele caindo, os olhos inflamados, os surdos. Vi gente que veio do campo sem um pelo no corpo, o nariz corroído por inseticidas, ouvidos purgando, gente que perdeu o controle motor. E os que andam com o pulmão artificial às costas, como os carros que usavam gasogênio na primeira guerra mundial? O seu furo é diferente. Bonitinho.
Te mostrei por causa da sombra. Acha que esse círculo de luz pode significar alguma coisa?
Não exagera, Souza. Para não entender, basta o furo.
Tenho certeza que representa.
Em nosso tempo, você andou numa fase de misticismo. Vai ver renasceu. Bem, a conversa está boa, mas preciso voltar. O elevador está sozinho.
Nos encontramos de novo?
Ignácio de Loyola Brandão, in Não Verás país nenhum

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