Apesar
de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, ele sempre
estará entre o céu e a terra, continuará lindo a nos emocionar.
Mulheres continuarão a desejar mulheres,
homens se beijarão e se amarão: o amor não tem limites, o desejo
não tem barreiras. A composição familiar nunca mais será a mesma.
Os jovens não deixarão de mudar padrões, quebrar regras.
O amor vencerá a bala. A Inteligência
sempre vencerá a burrice.
Drummond continuará arquiteto das
palavras, Niemeyer, o poeta das formas. Ambos continuarão gauche na
vida. Livros poderão ser proibidos, mas jamais serão esquecidos,
poderão estar escondidos nos labirintos das estantes, no labirinto
da nossa memória.
Apesar de você, a palavra será a melhor
arma, o pensamento, livre, as ideias brotarão, os questionamentos
serão infinitos, é da nossa essência, é nossa vocação.
Apesar de você, florescerá na
primavera, a solidariedade existirá, o altruísmo continuará vital
como o ar. Apesar de você, a bondade estará entre nós. Vamos
esperar para tudo melhorar, vamos esperar para o dia amanhecer sem
ódio, sem tiros, vamos esperar a tempestade passar.
Apesar de você, Dom Quixote lutará
contra moinhos de vento, Riobaldo, contra o amor por outro jagunço,
Canudos, contra as tropas da insensatez, Zumbi, contra a escravidão.
A dívida social não será paga. A história dos negros não será
reescrita nem recontada. Uma ditadura continuará a ser assassina, e
a tortura, nunca mais! Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem.
Hoje é dia 20 de outubro. Hoje é
celebrado o dia do poeta. Hoje é dia de Manuel Bandeira. Apesar de
você, podemos ir embora pra Pasárgada, onde somos amigos do rei,
termos o amor que quisermos, na cama que escolhermos e, se aqui não
somos felizes, lá a existência será uma aventura, lá faremos
ginástica, andaremos de bicicleta, montaremos em burros brabos e,
cansados, nos deitaremos na beira do rio, porque em Pasárgada tem
tudo, é outra civilização, nos sentiremos seguros, e no dia mais
triste, o mais triste de todos, amaremos quem quiser, porque lá
somos amigos do rei.
Apesar de você, toda a cultura será
acessível, Brecht proporá a revolução, a angústia estará na
solidão, a dor da alma não terá cura, até o dia em que decidirmos
não sofrer mais e agir. Sofreremos por causa de você, superaremos
apesar de você. Nossos ancestrais não sairão do lugar, seus
ensinamentos irão nos guiar, apesar de você. Os mortos continuarão
vivos entre nós. Continuarão a nos inspirar. Luther King continuará
mito. Jesus a nos defender. Simone de Beauvoir nos fez pensar. Gandhi
é o mito da paz.
O
índio guerreiro vai lutar, vai se esconder e sobreviver, vai
defender a sua mata, unir-se aos animais, defender sua família, até
o último guerreiro, e mais uma vez o mal não vencerá. Os rios
terão o poder de se regenerar, os mares, de se recompor, a fumaça
vai se dissipar, as bombas vão se calar. A floresta vai renascer das
cinzas. A destruição não nos acometerá.
Cometas vão passar. O Universo
continuará a se expandir e ser enigmático. As descobertas nos
surpreenderão. O conhecimento será sempre o caminho, não o ponto
final. O desconhecido será conhecido, para voltar a ser
desconhecido, que será conhecido, e desconhecido. Teorias podem ser
reescritas, nunca extintas ou ignoradas.
Michelangelo será eternamente belo.
Leonardo, genial. Van Gogh pintará as cores do vento. Pollock, a
representar nossa loucura. Picasso, a incongruência. Miró será
eternamente arrebatador. Rimbaud será nosso poeta que faz da vida,
versos, da sua andança, sentido: “Que venha a manhã, com brasas
de satã, o dever é ardor. Ela foi encontrada. Quem? A eternidade é
mar misturado ao sol”.
Shakespeare nunca deixará de mostrar o
horror de reinos, a loucura de reis. Campos de Carvalho narrarei de
cor. Continuará píncaro do espetacular.
Lobos uivarão para a lua. Cachorros
latirão uns para os outros. Gatos se esconderão na escuridão.
Sabiás cantarão antes do amanhecer, nos despertando com a beleza da
sua inconveniência. À noite, será sempre noite, por vezes
desesperadora, por vezes longa demais, dolorida e saudosa. Enfim, o
sol aparecerá. O ciclo das estações não se alternará. O minuto
de daqui a pouco será depois o minuto que se foi. O amanhã será
ontem.
A Justiça não será parcial, a defender
os que mais têm. A verdade poderá nunca prevalecer. Mas nenhum
doutor irá nos convencer do contrário. A polícia continuará a
reprimir, a defender o bem de quem os têm. Mas nunca será eliminado
o fato de sermos tão desiguais, de que quem não tem luta para
dividir. Os grilhões se romperam. As amarras se romperão. Apesar de
você.
Hoje é dia de poesia e samba. Todo dia é
dia de samba. Apesar de você, o sol há de brilhar mais uma vez, a
luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente, o
amor será eterno novamente. Quero ter olhos pra ver, a maldade
desaparecer. Amanhã será um novo dia. Apesar de você.
Marcelo
Rubens Paiva,
in
O Estado de São
Paulo (20.10.2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário