D.
Anselmo falava aos padres no mosteiro.
— Pelos
cálculos feitos, de direção e possível extensão da galeria
subterrânea, temos aí labor de uns poucos anos, se formos
diligentes e suarmos dez horas por dia naquela pedra, ou de muitos e
muitíssimos anos, se for descansada e ronceira nossa atividade.
Quero propor aqui à congregação que o chefe dos trabalhos, o homem
que há de estar de picareta na mão durante os próximos anos, seja
nosso irmão padre Hosana.
A
indicação do nome de Hosana foi longamente aplaudida pela
congregação, que ria à socapa, enquanto d. Anselmo, olhos
cintilantes, cofiava copiosamente a barba. Nando também riu, quando
viu Hosana, que se acercava dele, depois da reunião. Hosana estava
ainda trêmulo de raiva.
— Eu
hei de dizer a todos os visitantes do mosteiro que d. Anselmo
descobriu uma tênia no edifício, um pênis subterrâneo, um
oleoduto de esperma de frade.
— Você
não dirá nada disto, Hosana. O melhor é reconhecer que o padre
superior descobriu, ou desconfiou, que o informante da imprensa era
você, e inventou um castigo exemplar.
— Bem
quando eu sentia as doçuras da vingança — disse Hosana. — Por
que será que eu sempre perco, Nandinho?
Nando
sentiu uma súbita onda de piedade.
— Hosana,
pensa um pouco em Deus, a quem você devia servir.
— Pode
deixar que eu penso — disse Hosana. — Caim também pensava.
Inclusive tinha Deus na frente dele, como eu tenho o barbaças. Só
não tinha um Smith & Wesson, calibre 32.
— Você
acha que eu sou muito tirano? Quer dizer, em relação a você —
disse Levindo.
— Você,
meu bem? — disse Francisca. — O que é isso? Quem é que te
acusou disto?
Levindo
deu um discreto puxão na ponta dos cabelos de Winifred, como a
chamar a atenção dela para o que dizia Francisca e ao mesmo tempo
pedir-lhe que não se metesse. Estavam na camioneta, a caminho do
Engenho do Meio. Leslie ao volante, Nando na ponta, Winifred entre os
dois. No banco de trás Francisca aninhada nos braços de Levindo.
— Eu
também não acho que sou tirano não — disse Levindo —, muito ao
contrário. Eu me considero o próprio arauto de todas as liberdades
possíveis e imagináveis.
Houve
um silêncio e Nando olhou com íntimo fervor e — não, inveja não,
graças a Deus, e nem sequer desejo de estar no lugar de Levindo pois
tinha a vida dedicada a amores mais altos — com uma espécie de
obscura saudade as caras quase confundidas de Francisca e Levindo.
Dos cajueiros que se espalhavam aos dois lados da estrada vinha um
cheiro bom. O carro ia em marcha tranquila. Não obtendo resposta
Francisca insistiu:
— Quem
foi que disse?
— Não,
ninguém. Mas me lembrei disto porque quero te pedir uma coisa. Caso
eu não possa ir, é claro.
Levindo
tomou as mãos de Francisca nas suas, estudou os dedos longos, depois
revirou as palmas.
— Vai
ler minha sorte? — disse Francisca.
Levindo
pôs o rosto entre as palmas e Francisca sorrindo puxou o rosto dele
para que se beijassem.
— Se
você não puder ir aonde, seu doidinho?
— Ao
Centro Geográfico. Você vai em meu lugar?
— O
quê? Sozinha pelos matos?
— Não,
Francisca, tinha graça. Algum dia alguém há de ir, alguma
expedição. Você pode dar um jeito, não pode?
— Essa
é boa. Eu vou para o Xingu e você fica aqui fazendo o quê?
— Eu
digo se acontecer alguma coisa que me impeça de ir.
— Que
coisa, Levindo? Deixa de bobagem.
— Digamos
que eu esteja preso, por exemplo. Ou foragido da polícia, escondido
em algum canto. Você vai?
— Vou,
meu amor, vou aonde você quiser. Mas francamente, espero que você
venha comigo.
— Se
eu não puder, quero que você apanhe a terra com suas mãos. É
importante. É bom a gente poder dizer às pessoas: “Fui eu que
apanhei esta terra.” Ou: “Foi minha noiva que apanhou esta terra.
Eu não pude ir.”
— Prefiro
que você diga: “Fui eu que apanhei esta terra quando estive no
Centro Geográfico com minha noiva.”
— Eu
também prefiro, lógico.
— E
você vindo comigo apanha a terra. Eu não sujo as mãos.
— Puxa
— disse Levindo —, o Xingu inteiro está lá para te lavar as
mãos.
— Vamos
juntos — disse Francisca.
— Vamos
— disse Levindo — mas fica o trato.
Francisca
armou em cruz seus indicadores e deu um beijo no encontro dos dois,
selando a promessa.
— Fica
o trato — disse.
Levindo
aproveitou enquanto os dedos estavam ainda armados em cruz, beijou-os
também.
— A
vantagem é que se você apanhar a terra com estas mãos, ela já deu
flor quando chegar aqui.
— Vamos
parar com este namoro aí atrás — disse Leslie. — Isto é carro
sério.
Antonio
Callado, in Quarup
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