1
— Sinto
a presença dos seres gasosos de Canopus, ela suspirou, enquanto a
gente passeava debaixo das árvores.
— Bobagem,
é a neblina depois da chuva.
— Não
acredita em nada, não é mesmo? Pois você vai ver.
Chegou
mais perto de uma nesga de neblina e gritou:
— Mizkolitz!
Ganubar! Orref!
A
neblina se dissipou, em noite clara.
— Viu?,
ela perguntou.
— Vi
o quê?
— Vai
me dizer que não viu o gasoso ficar com medo, e evaporar de volta a
Canopus?
— Tudo
o que eu vi foi a neblina sumir.
— Será
que você nunca vai entender?
2
Ainda
teve outro incidente que nem mencionei, mas é que tem uma coisa
sobre a qual não quero falar, bem, mas acontece que aconteceu uma
coisa na festa, e eu não posso continuar com essa história toda sem
contar que lá um mordomo me procurou, me dizendo, desculpe, o senhor
é o número dezessete, eu disse, o quê?, por que dezessete?, e ele
disse, não, na lista aqui dos convidados o senhor está como
dezessete. O senhor não é fulano de tal, assim, assim, assado? Eu
disse que não, nem era esse meu nome, deve haver algum engano. Não
havia engano. O convidado para a festa não era eu.
3
— Telefone
para o senhor.
— Sim?
— Oi,
tesão, e esse pau enorme continua durão? Uma lambida nele.
Reconheci
a voz. E continuei ouvindo o festival de fantasias eróticas, em nome
do pai, do filho e do espírito tonto.
Pensei
rapidamente, se meu nome não é aquele, se minha presença aqui é
um equívoco, estou recebendo o telefonema endereçado a quem?
E
daí? E envenenei todas as frases:
— Ai,
lambida gostosa. Olha só como ficou. Até parece que está maior.
Passa, ai, a língua aqui, por aí, assim, assim, aí, bem aí.
4
Propp
tinha uma brincadeira que o divertia muito, quando eu lhe perguntava
o porque de alguma coisa:
— Com
por que é mais caro, e só depois das cinco.
Era
a origem de todos os males da pele, do intestino e da cabeça. O
mundo ia muito bem até nascer o porque. E foi me dizendo logo de
cara, se eu queria atingir alguma coisa tinha que me livrar desse
vício.
No
começo, é difícil. Sem por quê, viver, arrastar esses dias, um
atrás do outro, é subir uma escada sem corrimão, entrar pelado no
mar, andar no mato de olhos fechados, dormir ao relento e sem
cobertas. Mas, enfim, a gente acaba se acostumando a qualquer coisa.
Me acostumei a viver sem perguntar por quê. E a só frequentar as
questões periféricas, como?, quando?, onde?
E
lá estava ele, de novo, citando aquele velho rabino da Idade Média,
não tente melhorar o mundo, você só tornaria as coisas piores.
Claro que eu não concordava. Mas Propp achava a resistência ao
tratamento um sintoma seguro de recuperação, um sinal de boa
vontade em relação à mudança.
Pegue
a função XI, por exemplo, da lista de funções, “o herói deixa
a casa”. Para ele, isso era um fato absoluto, diante disso qualquer
por que era puramente ornamental. Era um tijolo da vida, uma
entidade molecular, inútil buscar arquiteturas por trás. As coisas
partiam daí. Para trás, apenas a imensa incógnita, que se media em
anos-luz como as distâncias entre os corpos celestes.
Com
isso, Propp me ensinou (seria essa a palavra?, acho que me
adestrou) a ser um protagonista invisível da minha vida, o
personagem de vidro por onde a vida passa como um raio de luz por um
cristal. Não por um vitral, onde já está escrito tudo aquilo que a
luz tem que significar. Ou quase, talvez. Essa era outra das
expressões favoritas do professor. Quase, talvez. Na dupla
dúvida, uma dúvida lançando desconfiança sobre a dúvida vizinha,
equação de quarto grau, nessa vertigem imaginava Propp fundar sua
certeza.
Como
todas as certezas, era apenas uma. Uma das N certezas, num
universo onde todas são igualmente prováveis. Mas era, enfim, uma
certeza, quem sabe.
Um
dia, sonhei com ele. No sonho, era o dono de um bar, onde eu chegava
e perguntava:
— Tem
cerveja?
E
ele respondia.
— Não.
— Tem
certeza?
— Também
não.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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