segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 16

1

Sinto a presença dos seres gasosos de Canopus, ela suspirou, enquanto a gente passeava debaixo das árvores.
Bobagem, é a neblina depois da chuva.
Não acredita em nada, não é mesmo? Pois você vai ver.
Chegou mais perto de uma nesga de neblina e gritou:
Mizkolitz! Ganubar! Orref!
A neblina se dissipou, em noite clara.
Viu?, ela perguntou.
Vi o quê?
Vai me dizer que não viu o gasoso ficar com medo, e evaporar de volta a Canopus?
Tudo o que eu vi foi a neblina sumir.
Será que você nunca vai entender?

2

Ainda teve outro incidente que nem mencionei, mas é que tem uma coisa sobre a qual não quero falar, bem, mas acontece que aconteceu uma coisa na festa, e eu não posso continuar com essa história toda sem contar que lá um mordomo me procurou, me dizendo, desculpe, o senhor é o número dezessete, eu disse, o quê?, por que dezessete?, e ele disse, não, na lista aqui dos convidados o senhor está como dezessete. O senhor não é fulano de tal, assim, assim, assado? Eu disse que não, nem era esse meu nome, deve haver algum engano. Não havia engano. O convidado para a festa não era eu.

3

Telefone para o senhor.
Sim?
Oi, tesão, e esse pau enorme continua durão? Uma lambida nele.
Reconheci a voz. E continuei ouvindo o festival de fantasias eróticas, em nome do pai, do filho e do espírito tonto.
Pensei rapidamente, se meu nome não é aquele, se minha presença aqui é um equívoco, estou recebendo o telefonema endereçado a quem?
E daí? E envenenei todas as frases:
Ai, lambida gostosa. Olha só como ficou. Até parece que está maior. Passa, ai, a língua aqui, por aí, assim, assim, aí, bem aí.

4

Propp tinha uma brincadeira que o divertia muito, quando eu lhe perguntava o porque de alguma coisa:
Com por que é mais caro, e só depois das cinco.
Era a origem de todos os males da pele, do intestino e da cabeça. O mundo ia muito bem até nascer o porque. E foi me dizendo logo de cara, se eu queria atingir alguma coisa tinha que me livrar desse vício.
No começo, é difícil. Sem por quê, viver, arrastar esses dias, um atrás do outro, é subir uma escada sem corrimão, entrar pelado no mar, andar no mato de olhos fechados, dormir ao relento e sem cobertas. Mas, enfim, a gente acaba se acostumando a qualquer coisa. Me acostumei a viver sem perguntar por quê. E a só frequentar as questões periféricas, como?, quando?, onde?
E lá estava ele, de novo, citando aquele velho rabino da Idade Média, não tente melhorar o mundo, você só tornaria as coisas piores. Claro que eu não concordava. Mas Propp achava a resistência ao tratamento um sintoma seguro de recuperação, um sinal de boa vontade em relação à mudança.
Pegue a função XI, por exemplo, da lista de funções, “o herói deixa a casa”. Para ele, isso era um fato absoluto, diante disso qualquer por que era puramente ornamental. Era um tijolo da vida, uma entidade molecular, inútil buscar arquiteturas por trás. As coisas partiam daí. Para trás, apenas a imensa incógnita, que se media em anos-luz como as distâncias entre os corpos celestes.
Com isso, Propp me ensinou (seria essa a palavra?, acho que me adestrou) a ser um protagonista invisível da minha vida, o personagem de vidro por onde a vida passa como um raio de luz por um cristal. Não por um vitral, onde já está escrito tudo aquilo que a luz tem que significar. Ou quase, talvez. Essa era outra das expressões favoritas do professor. Quase, talvez. Na dupla dúvida, uma dúvida lançando desconfiança sobre a dúvida vizinha, equação de quarto grau, nessa vertigem imaginava Propp fundar sua certeza.
Como todas as certezas, era apenas uma. Uma das N certezas, num universo onde todas são igualmente prováveis. Mas era, enfim, uma certeza, quem sabe.
Um dia, sonhei com ele. No sonho, era o dono de um bar, onde eu chegava e perguntava:
Tem cerveja?
E ele respondia.
Não.
Tem certeza?
Também não.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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