segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Os estágios: do Mundo comum aos Aliados

Estágio 1 — O mundo comum

Toda abertura de história, seja ela um mito, um conto, um roteiro ou um romance, tem que conter certa força, certa carga. Tem que agarrar o leitor ou telespectador; é no início que se dá o tom da história, onde se sugere para onde se vai, além de se transmitir muitas informações sem que se perca o ritmo. Vogler afirma — e isso, quem escreve sabe — que os começos são realmente bastante delicados.
Um título pode ser uma boa pista para anunciar a natureza da história e a atitude do escritor. Um bom título pode virar uma metáfora de vários níveis para o herói ou para seu mundo.
A maioria das histórias são viagens que transportam os heróis e plateias para mundos especiais, assim sendo, a maioria delas se inicia estabelecendo um mundo comum como base para comparação.
O mundo especial de qualquer história, afirma Vogler, só é especial se houver a possibilidade de ser contrastado a um outro, cotidiano e “normal”, com as questões corriqueiras, das quais o herói será retirado.
O mundo comum é o contexto, a base, o passado do personagem protagonista.
Comparado com o especial, o mundo comum pode se apresentar chato ou calmo, mas geralmente as sementes das emoções e dos desafios já se encontram nele. Os problemas e os conflitos do herói já estão presentes no mundo comum, mas só estão esperando ser ativados.
Outra grande função do mundo comum, segundo Vogler, é sugerir a questão dramática da narrativa. Toda boa história suscita uma série de questões sobre o herói. “Será que ele vai atingir seu objetivo?”, “Superar seu defeito?”, “Aprender a lição que precisa?”

Todo herói necessita de um problema interno e outro externo.

Personagens que não têm problemas internos podem parecer superficiais, não importa o quão heroico sejam. Para evitar isso, é necessário que esses personagens tenham um problema íntimo, uma falha de personalidade, ou mesmo um dilema moral, para que ele seja mais interessante e intrigante frente ao leitor ou telespectador.
Os heróis precisam aprender algo no decorrer da história, seja conviver com os outros, como acreditar em si mesmos, ou enxergar além das aparências.
Vogler crava que o público adora quando um personagem aprende, cresce e enfrenta os desafios internos e externos da vida.
Na tarefa de escritores, podemos criar, para nossos personagens, uma boa entrada em cena. O que os personagens estarão, dizendo, sentindo? Qual o contexto nesse momento? Eles estão em paz, ou atormentados? Estão eles no auge de sua capacidade emocional ou se segurando para não explodir?
Para Vogler, um dos mágicos poderes da escrita é a capacidade de seduzir cada leitor, para que cada um projete uma parte de seu ego no personagem que se encontra na página.
Ele incentiva a criação de identificação, dando ao herói objetivos, impulsos, desejos e necessidades universais. Todos são capazes de se relacionar com impulsos fundamentais, como necessidade de reconhecimento, afeição, aceitação ou compreensão.
A identificação com necessidades universais estabelece um vínculo entre plateia e herói.
Os heróis de contos de fadas têm algo em comum, uma qualidade que os une acima das fronteiras de cultura, geografia e tempo: têm carência de algo que lhes foi tirado, algo perdido, e que se necessita urgente ter de volta.
Por vezes, a vida externa do herói pode ser completa, mas lhe falta alguma coisa na personalidade, uma qualidade, como a compaixão, a capacidade de perdoar ou de manifestar amor.
A tragédia grega, teorizada por Aristóteles há mais de 2 mil anos, descreve um erro comum dos heróis trágicos: eles podem ter muitas qualidades dignas de admiração, mas, no meio delas, há uma falha trágica, que os coloca em confronto direto com o seu destino pessoal, com outros homens, e com os deuses. Isso acaba por levá-los à destruição.
Vogler afirma que todo herói bem construído e “redondo” tem em si vestígios dessa falha trágica, alguma fraqueza ou defeito que o faz completamente humano e real frente aos que o leem ou assistem.
Os heróis perfeitos ou muito “limpos” não são muito interessantes, e é difícil se relacionar com eles.
Até mesmo o Super-Homem tem seus pontos fracos que o humanizam e o tornam simpático, como a sua vulnerabilidade à kryptonita, a incapacidade de enxergar através do chumbo, e a sua identidade secreta, a toda hora sendo ameaçada.
Vogler afirma que, para se poder humanizar um herói, dê a ele uma ferida, um machucado visível e físico, ou um ferimento profundo e emotivo.
A ferida ajuda a dar ao personagem um sentido de história pessoal e de realismo, sendo que todos nós trazemos cicatrizes de dores passadas, rejeições, desapontamentos, abandonos e fracassos.
Muitas narrativas têm como tema a jornada que se percorre com o intuito de curar uma ferida e restaurar a peça que faltava num psiquismo deficiente.
O tema da história é uma afirmativa, uma certeza sobre um aspecto da vida.

Christopher Vogler, in A jornada do escritor

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