sábado, 3 de agosto de 2019

O tempo é o lenço de toda a lágrima

No posto de saúde, Sidónio Rosa lava as mãos, olhos distantes, alheio ao rebuliço que reina no exterior. Acabara de prestar os primeiros socorros ao administrador Suacelência. Não passara uma hora desde que o chefe da administração tinha dado entrada no posto em estado crítico. No princípio, Sidónio receou tratar-se de mais um caso de meningite. Mas logo recitificou o diagnóstico: os sintomas eram típicos de um envenenamento: salivação, náuseas, sudação incontrolada.
Alguém vá ao lado dele para o amparar nos solavancos.
Inanimado no banco traseiro da carrinha que o levará para o hospital da cidade, Suacelência ainda sofre de convulsões que lhe projetam os olhos fora do rosto. Eis o avesso do destino: o homem que não queria transpirar está-se afogando em suores.
Ele vai sobreviver, Doutor?
A voz ganha eco no pequeno cubículo onde o médico muda de roupa. Quem fala parece uma miúda, quase sem idade. Mas, depois, Sidónio reconhece: ela é Esposinha, a delicada esposa de Suacelência, acanhada demais para figurar como primeira-dama. Entende-se por que lhe deram aquele nome. Ela é apenas a esposa de alguém.
O meu marido abusou da dose daqueles pós que o senhor lhe mandou tomar…
Mas quais pós?
Aqueles pós de raiz que o senhor lhe receitou ontem. Para acabar com a transpiração.
O médico não responde. A fúria rouba-lhe a fala. Alguém fizera uso do seu nome para que Suacelência se auto-envenenasse. Sem se despedir de Esposinha, o estrangeiro se apressa pelos caminhos que desembocam no lar dos Sozinhos. Pensa para nenhuns botões: o Administrador tinha sido envenenado e não tardaria que o seu nome estivesse envolvido na tentativa de assassínio. Daí a sua pressa em encontrar Dona Munda. Encontra-a a sair de casa, envergando luto.
Onde vai, Dona Munda?
Vou apresentar condolências a Dona Esposinha.
Suacelência ainda não morreu.
Para mim já está morto.
Altiva, Dona Munda prossegue caminho, fingindo não escutar o português que suplica que regresse. De vestido preto, move-se esbelta, passo curto, parecendo ter mais calcanhares que sapatos. O médico segue-a e puxa-a pelo braço. Insiste que ela regresse a casa. Munda não resiste, corpo encostado ao do médico enquanto ele a vai arrastando.
O senhor está a dançar comigo, Doutor?
Eu tenho uma pergunta muito séria para si: quem foi que levou esses pós venenosos a Suacelência?
Entremos, Doutor. Falamos dentro. O senhor está fora de si.
Caminham de braço dado, semelhando um casal vindo da noite. Assim que entram em casa, o português enfrenta a mulher:
Agora, olhe nos meus olhos e diga: a senhora envenenou o homem?
Suacelência não é um homem.
Estou desgraçado! A senhora não só cometeu um crime como me incriminou também a mim.
O médico está irreconhecível. Bate com a porta e regressa à rua com as mãos erguidas, dedos cruzados por trás da nuca. Se alguém cruzar com ele na Vila acreditará que ele se converteu num tresandarilho.
Dona Munda ainda espera que ele retorne, para terminar a mal começada conversa. Porém, o português apenas regressa no dia seguinte. Manhã cedinho, entra sem bater, surpreendendo Munda deitada no chão do corredor, dormindo enroscada junto à porta do quarto de Bartolomeu e ainda envergando o mesmo cerimonioso vestido preto.
Dona Munda? Está tudo bem?
Ela se estremunha, emenda o corpo, ajeita os cabelos, corrige as roupas.
Aconteceu alguma coisa? A senhora perdeu os sentidos?
Eu durmo sempre assim…
Como sempre assim?
Dormia todas as noites derramada à porta do quarto de Bartolomeu, na ansiedade de escutar um sinal do estado do marido.
Afinal, Dona Munda. Tanta raiva, tanta raiva?!
Por favor, não diga nada ao fulano.
Fique tranquila.
Prometa-me uma coisa, Doutor. Se Bartolomeu morrer, se ele partir…
Ninguém vai partir, Dona Munda. A única pessoa que vai partir sou eu.
Vai embora, como? De vez?
Volto para a minha terra. Tudo isto acabou para mim.
O senhor não nos pode deixar!
Já aconteceu, já deixei, venho só me despedir.
Sobre aquilo de ontem, eu nem acabei de lhe explicar…
Não preciso que me diga nada, eu vou-me embora.
O homem atravessa a porta de saída, debruça-se para pegar nas malas que esperavam no pátio. A voz de Munda assume gravidade nunca escutada antes:
E Deolinda?
Havemos de nos encontrar um dia.
Não. Vocês nunca mais se vão encontrar.
O mundo é pequeno, Dona Munda.
Você não entende? Deolinda está morta!
Um arco tenso toma conta das costas do visitante.
As malas tombam. As mãos do médico esvoaçam como aves cegas, numa dança desencontrada. O corpo quer falar, não encontra voz nem gesto. Por fim, consegue vencer a surpresa que o inundou e balbucia:
A senhora inventou agora essa mentira apenas para me reter aqui?
Munda não escuta. Ela está misteriosamente tranquila, as suas palavras já perderam toda a pretensão. Nesse tom mortiço, prossegue:
Deolinda morreu antes de você chegar cá. Morreu quando fazia um aborto, do outro lado da fronteira.
Não pode ser, não pode ser.
Ela estava grávida desse seu amigo, o administrador Suacelência.
O veneno que Munda tanto lhe pedira não era, como ele sempre imaginou, para matar o marido. Era para se vingar de Suacelência.
O barulho pesa, mas o não escutar é que cansa. Sidónio, naquele momento, preferia a exaustão de nada mais escutar. Talvez por isso tenha tomado a decisão de se retirar para a pensão. Dona Munda segue atrás dele, silenciosa como num cortejo fúnebre. Quando Sidónio entra no quarto, ela entra junto com ele. Depois pede:
Deixe-me ficar aqui esta noite. Fico num canto, quieta, caladinha, sem existir.
O médico não escuta. A mágoa roubou-lhe os sentidos. A conclusão para ele era tão evidente quanto insuportável: o casal o enganara da maneira mais infame. Tinham mentido sobre o sagrado: a morte da própria filha. E, ainda pior, tinham aproveitado a ocasião para extorquir dinheiro e apoios.
O tempo vai passar, o senhor vai esquecer.
No princípio, a voz de Munda é, para Sidónio, apenas uma variação do silêncio. Ela vai prosseguindo, em intentos de consolo:
O tempo é o lenço de toda a lágrima.
E acrescenta o ditado: o esquecimento é a derradeira morte dos mortos. As palavras de Munda apenas reiteram a sua decisão: voltará hoje mesmo à sua terra, abandonará Vila Cacimba para nunca mais voltar. Estendido na cama, vai ruminando angústias como o guerreiro que, depois da derrota, ainda afia o gume da espada. Aos poucos, porém, sobrevém-lhe um abatimento, e ele se afunda numa neblina. Antes de adormecer ainda escuta a mulher:
O senhor não conhece o tempo, não sabe como o tempo é o único remédio.
O médico não responde. Está deitado, olhando fixamente a ventoinha avariada, pendendo do tecto. Deixa que se instale nele um pesado silêncio como um cortinado escurecendo o mundo. E adormece sentindo o ranger da cama. Vagamente se apercebe de que um outro corpo se estende a seu lado. Como em sonho, os braços de Munda lhe rodeiam o pescoço. Mas já não são braços. Apenas lençóis brancos esvoaçam como aves de arribação por entre o espesso céu de Vila Cacimba.
Talvez seja a espessura desse céu que faz os cacimbeiros sonharem tanto. Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco.
Mia Couto, in Venenos de Deus, Remédios do Diabo

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