terça-feira, 27 de agosto de 2019

Ninguém vai rir - 2

Atravessamos o presente de olhos vendados, mal podemos pressentir ou adivinhar aquilo que estamos vivendo. Só mais tarde, quando a venda é retirada e examinamos o passado, percebemos o que foi vivido, compreendendo o sentido do que se passou.
Eu imaginava naquela noite brindar ao meu sucesso, e de modo algum podia prever que aquilo pudesse ser o prenúncio solene do meu fim.
E porque não duvidava de nada, acordei no dia seguinte de bom humor: enquanto Klara continuava dormindo um sono feliz, peguei o artigo anexado à carta do Sr. Zaturecky e comecei a lê-lo na cama com uma indiferença divertida.
Esse artigo, intitulado Um mestre do desenho tcheco, Mikolas Ales, não merecia nem mesmo a meia hora de desatenção que eu lhe dispensava. Era um conjunto de lugares-comuns alinhados sem o menor senso de lógica.
Era, sem dúvida alguma, uma inépcia. Opinião que o Dr. Kalusek, redator-chefe da revista O Pensamento Plástico (personagem por sinal dos mais antipáticos), confirmou no mesmo dia por telefone. Ele ligou para mim na faculdade e disse: — Você recebeu a dissertação do Sr. Zaturecky? Pois bem, faça-me o favor de redigir; cinco leitores demoliram seu artigo, mas ele continua insistindo e acha que você é a única e exclusiva autoridade. Escreva em poucas linhas que o artigo não tem fundamento. Você é bem indicado para isso, pois sabe ser incisivo, e assim ele nos deixará em paz.
Mas alguma coisa em mim se revoltou. Por que deveria ser exatamente eu o carrasco do Sr. Zaturecky? Era eu por acaso quem recebia um salário de redator-chefe? Aliás, lembrava-me muito bem que a revista O Pensamento Plástico tinha julgado prudente recusar meu estudo; e também o nome do Sr. Zaturecky estava para mim fortemente ligado à lembrança de Klara, à garrafa de slivovice e a uma boa noitada. E, por último, não posso negá-lo, é humano, poderia contar nos dedos da mão e talvez num só dedo, as pessoas que me consideram como “a única e exclusiva autoridade”. Por que me tornar inimigo desse único admirador?
Terminei minha conversa com Kalusek com algumas palavras espirituosas e vagas que cada um de nós podia considerar como quisesse, ele como uma promessa e eu como uma escapatória. Desliguei firmemente decidido a jamais escrever o parecer crítico para o Sr. Zaturecky.
Apanhei então um papel de carta na gaveta e escrevi ao Sr. Zaturecky evitando cuidadosamente formular qualquer tipo de apreciação sobre seu trabalho, alegando o fato de que minhas ideias sobre a pintura do século XIX são tidas em geral como erradas, sobretudo pela redação da revista O Pensamento Plástico, de modo que minha intervenção poderia ser mais nociva do que útil; ao mesmo tempo, envolvia o Sr. Zaturecky com uma eloquência amistosa na qual não passaria despercebida uma marca de simpatia por ele.
Logo que essa carta foi posta na caixa do correio, esqueci o Sr. Zaturecky. Mas o Sr. Zaturecky não me esqueceu.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

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