O
velho viu janeiro a erguer-se e a fechar-se à volta dos kuvale, como
uma armadilha. Primeiro a seca. Muitos bois morreram. À medida que
avançavam para leste, galgando a serra, o ar foi-se adoçando, o
chão ficando mais fresco e mais macio. Encontraram algum pasto,
cacimbas barrentas, e prosseguiram, decifrando com esforço os ténues
indícios de verde. A vedação surgiu de surpresa, como um insulto,
ofendendo o quadril luminoso da manhã. Os rebanhos detiveram-se. Os
jovens juntaram-se em grupos nervosos, gritando para o alto breves
frases de espanto e de revolta. António, o filho varão,
aproximou-se. Suava. O belo rosto, de nariz direito, queixo bem
definido, estava afogueado pelo esforço e pela cólera:
O
que fazemos?
O
velho sentou-se. A cerca corria durante centenas de metros. Emergia,
à direita, por entre um áspero novelo de espinheiras, ali chamadas
unhas-de-gato, e afundava-se, à esquerda, num pesadelo ainda mais
denso, mais afiado, de bissapas, de compridos catos em forma de
candelabro, e de mutiatis. Para lá da vedação abria-se um brando
caminho de seixos brancos por onde, naquela altura do ano, deveria
deslizar um pequeno ribeiro.
Jeremias
Carrasco escolheu um graveto, alisou a areia, e pôs-se a escrever.
António agachou-se a seu lado.
Nessa
tarde derrubaram a vedação, e passaram para o outro lado.
Encontraram alguma água. Bons pastos. Começou a ventar. O vento
arrastava pesadas sombras, como se trouxesse a noite, em farrapos,
arrancada a algum deserto ainda mais remoto. Escutaram o ruído de um
motor e viram surgir, entre a penumbra e a poeira, um jipe
transportando seis homens armados. Um deles, um mulato esquivo, com o
aspeto desvalido de um gato molhado, saltou do veículo e avançou
contra eles agitando na mão direita uma AK-47.
Gritava
em português e nkumbi. Algumas frases chegaram, dilaceradas pelo
vento, aos ouvidos de Jeremias:
Esta
terra tem dono! Saiam! Saiam já!
O
velho ergueu a mão direita, tentando conter o ímpeto dos jovens.
Demasiado tarde. Um rapazote esgalgado, que só há poucos meses
recebera esposa, e ao qual chamavam Zebra, lançou a azagaia
(ehonga). A arma desenhou uma elipse elegantíssima no céu em
pânico, e foi cravar-se, com uma pancada seca, a escassos
centímetros das botas do mulato.
Houve
um brevíssimo instante de silêncio. O próprio vento pareceu
sossegar. Depois, o vigilante ergueu a arma e disparou.
À
luz rigorosa do meio-dia teria sido um banho de sangue. Os seis
homens estavam armados. Alguns dos pastores haviam passado pelo
exército e também eles exibiam armas de fogo. Àquela hora, porém,
com o vento chicoteando a escuridão, só duas balas encontraram
carne. Zebra foi ligeiramente ferido num braço. O mulato numa perna.
Ambas as partes retiraram, mas, na confusão, muitas vacas ficaram
para trás.
Na
noite seguinte um grupo de jovens pastores, liderados por Zebra,
reentrou na fazenda. Voltaram com algum do gado extraviado, meia
dúzia de vacas alheias, e um garoto de catorze anos, que, segundo
Zebra, os perseguira a cavalo, gritando como um possesso.
Jeremias
assustou-se. Roubar gado faz parte da tradição. Acontece muito.
Naquele caso fora uma espécie de troca. O sequestro do rapaz, isso
sim, podia trazer-lhes problemas. Mandou chamá-lo. Era um
adolescente de olhos muito verdes, uma cabeleira indómita, apanhada
num rabo-de-cavalo. Uma dessas figuras a que, em Angola, é costume
chamar fronteiras perdidas, porque à luz do sol parecem
brancos, e na penumbra se revelam, afinal, amulatados – de onde se
conclui que, por vezes, as pessoas se conhecem melhor longe da luz.
Encarou o velho com desprezo:
O
meu avô vai-te matar!
Jeremias
riu-se. Escreveu na areia:
Já
morri uma vez. À segunda não custa tanto.
O
adolescente gaguejou qualquer coisa, surpreso. Começou a chorar:
Chamo-me
André Ruço, senhor, sou neto do General Ruço. Diga-lhes que não
me façam mal. Deixem-me ir embora. Fiquem com as vacas, mas
deixem-me ir embora.
O
velho esforçou-se por convencer os jovens a libertarem André. Estes
exigiam as vacas de volta e a garantia de que poderiam atravessar a
fazenda em busca de melhores pastos. Estavam nisto, há três dias,
quando Jeremias viu o passado agachar-se diante de si. Envelhecera, o
que nem sempre acontece, há passados que atravessam séculos sem que
o tempo os corrompa. Aquele não: mirrara ainda mais, ganhara rugas,
e o cabelo que lhe restava já quase não tinha cor. A voz, essa,
permanecia sólida e firme. Naquele momento, ao deparar-se com Monte,
ao vê-lo erguer-se e ser empurrado e atirado para trás, ao vê-lo
correr, perseguido pelos jovens pastores, Jeremias Carrasco voltou a
lembrar-se dos diamantes de Orlando Pereira dos Santos.
José
Eduardo Agualusa, in
Teoria Geral do Esquecimento
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