Por
causa de Francisca, Levindo se encontrava às vezes no pleno fogo
cruzado dos protestantes.
— Mas
eu não vejo porque é que vocês hão de me criticar por causa da
lua de mel no Xingu! — disse Levindo.
— Francisca
adora os índios. Quer conhecê-los. Pegou com esse tal de professor
Macedo — antropólogo, sociólogo, sei lá direito — a mania dos
desenhos corporais que contariam a história das tribos, ou do
inconsciente das tribos, ou coisa parecida. Está doida para copiar e
colecionar os desenhos. Quer ir ao Xingu. Por que é que eu hei de
ser promovido a monstro por fazer a vontade dela?
— Não
— disse Winifred —, não fuja assim do assunto não. Francisca
irá ao Xingu com grande prazer. Mas antigamente você estava de
acordo em ir passar a lua de mel na Europa. Muito bem. Um belo dia
você lê não sei que história sobre o Centro Geográfico do Brasil
e resolve ir ao Xingu. A partir daí, sem consultar Francisca, você
resolve que o melhor tempo de folga para ir ao Xingu é a lua de mel.
O que eu critico é esse pouco caso, Levindo, essa maneira de agir
como se só você contasse.
— Pois
escutem. Eu estou resolvido a ir dentro de pouco tempo ao interior do
Nordeste inteiro, com o Januário. Deixo Francisca, durante esse
tempo, ir à Europa com o pai. Estão satisfeitos?
— Deixo
— disse Winifred —, deixo Francisca.
— Ué
— disse Levindo. — O que é que tem dizer deixo?
— Em
primeiro lugar me diga: você perguntou a Francisca se ela quer
ir à Europa agora ou se preferiria acompanhar você e
Januário?
— Ah
— disse Levindo —, vocês também são de morte!
— Não,
Levindo — disse Leslie. — A Winifred não está implicando com
você. Ela critica uma atitude sua, uma atitude brasileira em relação
à mulher. Não é isto, Nando? Você não acha que Winifred tem
razão?
Nando
se limitou a dar de ombros. Winifred voltou a Levindo.
— Em
resumo, Levindo, sua revolução não inclui as mulheres. Você nunca
menciona as mulheres no seu esquema. Ou digamos que inclui as
mulheres. Mas não inclui a sua mulher, inclui?
Levindo
se encolerizou.
— Ora,
Winifred, pergunte a Francisca se ela quer marchar ao meu lado nos
campos. Garanto que ela não quer.
— Você
só fala assim — disse Leslie — porque Francisca não está aqui,
seu brasileiro.
— Eu
juro que era capaz de ficar em casa e deixar minha mulher fazer a
revolução, se a vocação revolucionária fosse dela, e não minha.
Tanto
Winifred como Leslie e até Nando sorriram.
— Palavra!
— disse Levindo. — Puxa! Vocês não me acreditam? Palavra!
— Palavra
de brasileiro, e brasileiro nortista — disse Leslie.
— Bem
— disse Levindo —, se você quer sair para o insulto é
diferente.
Levindo
saiu furioso pela porta afora. Winifred tomou um gole grande de gim
com angustura, balançou a cabeça, soprou um cacho ruivo que lhe
voava sobre a testa.
— Pronto!
— disse Winifred. — Casal de desastrados ingleses. Quando não é
o marido é a mulher que entorna o caldo.
— E
o nosso Nando, que não deu nenhum palpite? — disse Leslie.
— É
desunida a classe dos brasileiros — disse Nando. — Vocês me
deixaram em paz, eu deixei o Levindo sozinho. De mais a mais o que é
que um pobre padre entende dessas histórias de mulher em casa e
amante nas barricadas?
Mas
ah! como estava a favor de Levindo. Havia uma flor, Francisca, e
diante dela que votos faziam os anglicanos, hereges? Queriam que a
flor se transformasse em soja, feijão de corda, fruta-pão. Melhor,
muito melhor que fosse tudo como devia ser ao longo dos bem batidos e
sapientes caminhos de Deus. Levindo seria um Simão de Bardi
atarefado e distraído, que amaria Francisca sem mesmo saber o que
lhe fora dado amar, que a deixaria em breve pura, mesa posta para
aqueles banquetes de espécies santas que de milênio em milênio se
ofertam a dois eleitos que em silêncio repartem o pão de estrelas:
e
quindi uscimmo a riveder le stelle...
puro
e disposto a salire alle stelle...
l’amor
que move il sole e l’altre stelle…
— Tem
bastante açúcar? — disse Winifred.
— Está
ótimo — disse Francisca.
— Mas
é mesmo verdade, sabe? — disse Winifred. — Você e Levindo são
pessoas que eu gostaria de ter sempre perto de mim.
Era
no dia seguinte ao da discussão com Levindo. Nando ia sair com
Leslie, que queria estudar, em velhos livros de esmolas e donativos
feitos ao mosteiro, alguma coisa da história do Senhora do O.
Estavam os dois na sala diante da mesa em que Leslie espalhara mapas
e documentos. Dali ouviam as vozes de Francisca e Winifred na
varanda. Ajoelhada no chão de ladrilho Winifred recortava jornais
com uma tesoura. Leslie e Nando escutavam em silêncio. Não trocavam
segredos as duas mulheres mas talvez não falassem assim diante dos
homens. Fosse como fosse, pensou Nando, era tácito o silêncio
adotado por ambos. As vozes subiam nítidas no ar calmo. Ouvia-se até
o ruído delicado de colherinhas de prata batendo nas xícaras de
café.
— Está
aí um cumprimento que eu vou guardar para os meus filhos — disse
Francisca.
— Mas...
— Ah,
tem um mas.
— Você
gosta muito dele, não gosta?
— Gosto
— disse Francisca. — Muito.
— Mas
não se entregue totalmente a ele.
— Bem
que eu tenho tentado — riu Francisca.
Winifred
também riu, enquanto Nando se contraía segurando a borda da mesa.
Beatriz entre as amigas, tentando parecer leviana como as amigas.
— Não
falo nesse sentido — disse Winifred. — Ou apenas nesse sentido.
Não se deixe ficar como um enfeite na vida dele.
— O
que me assusta é que a vida de Levindo não tem enfeites. É tudo
vida, Winifred.
— Você
não está dizendo isto só porque o ama muito?
Houve
um ruído de xícara virando em pires, de colher caindo no ladrilho.
— Desculpe,
Winifred — disse Francisca. — Nada, ué. A xícara estava vazia.
Eu apanho a colher.
— Sabe
o que é que eu acho, Winifred? — disse Francisca. — Ninguém
pode amar Levindo suficientemente. Ele é bom demais. Puro demais.
— Estica
esse jornal aí para eu cortar direito — disse Winifred. — E não
vai me dizer que você está apaixonada a este ponto.
— Não
estou tanto quanto Levindo merece, isso eu garanto.
— Assim,
para deixar a data em cima da folha — disse Winifred. — Mas quer
dizer então que você está disposta a ficar em casa cuidando das
crianças.
Francisca
riu.
— Não
vão ser crianças dessas que andam por aí. São os filhos de
Levindo, que vai fazer um mundo novo para as crianças morarem.
— Ai,
ai — suspirou Winifred —, é difícil emancipar as mulheres.
Antonio
Callado, in Quarup
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