sábado, 10 de agosto de 2019

É tudo vida, Winifred

Por causa de Francisca, Levindo se encontrava às vezes no pleno fogo cruzado dos protestantes.
Mas eu não vejo porque é que vocês hão de me criticar por causa da lua de mel no Xingu! — disse Levindo.
Francisca adora os índios. Quer conhecê-los. Pegou com esse tal de professor Macedo — antropólogo, sociólogo, sei lá direito — a mania dos desenhos corporais que contariam a história das tribos, ou do inconsciente das tribos, ou coisa parecida. Está doida para copiar e colecionar os desenhos. Quer ir ao Xingu. Por que é que eu hei de ser promovido a monstro por fazer a vontade dela?
Não — disse Winifred —, não fuja assim do assunto não. Francisca irá ao Xingu com grande prazer. Mas antigamente você estava de acordo em ir passar a lua de mel na Europa. Muito bem. Um belo dia você lê não sei que história sobre o Centro Geográfico do Brasil e resolve ir ao Xingu. A partir daí, sem consultar Francisca, você resolve que o melhor tempo de folga para ir ao Xingu é a lua de mel. O que eu critico é esse pouco caso, Levindo, essa maneira de agir como se só você contasse.
Pois escutem. Eu estou resolvido a ir dentro de pouco tempo ao interior do Nordeste inteiro, com o Januário. Deixo Francisca, durante esse tempo, ir à Europa com o pai. Estão satisfeitos?
Deixo — disse Winifred —, deixo Francisca.
Ué — disse Levindo. — O que é que tem dizer deixo?
Em primeiro lugar me diga: você perguntou a Francisca se ela quer ir à Europa agora ou se preferiria acompanhar você e Januário?
Ah — disse Levindo —, vocês também são de morte!
Não, Levindo — disse Leslie. — A Winifred não está implicando com você. Ela critica uma atitude sua, uma atitude brasileira em relação à mulher. Não é isto, Nando? Você não acha que Winifred tem razão?
Nando se limitou a dar de ombros. Winifred voltou a Levindo.
Em resumo, Levindo, sua revolução não inclui as mulheres. Você nunca menciona as mulheres no seu esquema. Ou digamos que inclui as mulheres. Mas não inclui a sua mulher, inclui?
Levindo se encolerizou.
Ora, Winifred, pergunte a Francisca se ela quer marchar ao meu lado nos campos. Garanto que ela não quer.
Você só fala assim — disse Leslie — porque Francisca não está aqui, seu brasileiro.
Eu juro que era capaz de ficar em casa e deixar minha mulher fazer a revolução, se a vocação revolucionária fosse dela, e não minha.
Tanto Winifred como Leslie e até Nando sorriram.
Palavra! — disse Levindo. — Puxa! Vocês não me acreditam? Palavra!
Palavra de brasileiro, e brasileiro nortista — disse Leslie.
Bem — disse Levindo —, se você quer sair para o insulto é diferente.
Levindo saiu furioso pela porta afora. Winifred tomou um gole grande de gim com angustura, balançou a cabeça, soprou um cacho ruivo que lhe voava sobre a testa.
Pronto! — disse Winifred. — Casal de desastrados ingleses. Quando não é o marido é a mulher que entorna o caldo.
E o nosso Nando, que não deu nenhum palpite? — disse Leslie.
É desunida a classe dos brasileiros — disse Nando. — Vocês me deixaram em paz, eu deixei o Levindo sozinho. De mais a mais o que é que um pobre padre entende dessas histórias de mulher em casa e amante nas barricadas?
Mas ah! como estava a favor de Levindo. Havia uma flor, Francisca, e diante dela que votos faziam os anglicanos, hereges? Queriam que a flor se transformasse em soja, feijão de corda, fruta-pão. Melhor, muito melhor que fosse tudo como devia ser ao longo dos bem batidos e sapientes caminhos de Deus. Levindo seria um Simão de Bardi atarefado e distraído, que amaria Francisca sem mesmo saber o que lhe fora dado amar, que a deixaria em breve pura, mesa posta para aqueles banquetes de espécies santas que de milênio em milênio se ofertam a dois eleitos que em silêncio repartem o pão de estrelas:

e quindi uscimmo a riveder le stelle...
puro e disposto a salire alle stelle...
l’amor que move il sole e l’altre stelle…

Tem bastante açúcar? — disse Winifred.
Está ótimo — disse Francisca.
Mas é mesmo verdade, sabe? — disse Winifred. — Você e Levindo são pessoas que eu gostaria de ter sempre perto de mim.
Era no dia seguinte ao da discussão com Levindo. Nando ia sair com Leslie, que queria estudar, em velhos livros de esmolas e donativos feitos ao mosteiro, alguma coisa da história do Senhora do O. Estavam os dois na sala diante da mesa em que Leslie espalhara mapas e documentos. Dali ouviam as vozes de Francisca e Winifred na varanda. Ajoelhada no chão de ladrilho Winifred recortava jornais com uma tesoura. Leslie e Nando escutavam em silêncio. Não trocavam segredos as duas mulheres mas talvez não falassem assim diante dos homens. Fosse como fosse, pensou Nando, era tácito o silêncio adotado por ambos. As vozes subiam nítidas no ar calmo. Ouvia-se até o ruído delicado de colherinhas de prata batendo nas xícaras de café.
Está aí um cumprimento que eu vou guardar para os meus filhos — disse Francisca.
Mas...
Ah, tem um mas.
Você gosta muito dele, não gosta?
Gosto — disse Francisca. — Muito.
Mas não se entregue totalmente a ele.
Bem que eu tenho tentado — riu Francisca.
Winifred também riu, enquanto Nando se contraía segurando a borda da mesa. Beatriz entre as amigas, tentando parecer leviana como as amigas.
Não falo nesse sentido — disse Winifred. — Ou apenas nesse sentido. Não se deixe ficar como um enfeite na vida dele.
O que me assusta é que a vida de Levindo não tem enfeites. É tudo vida, Winifred.
Você não está dizendo isto só porque o ama muito?
Houve um ruído de xícara virando em pires, de colher caindo no ladrilho.
Desculpe, Winifred — disse Francisca. — Nada, ué. A xícara estava vazia. Eu apanho a colher.
Sabe o que é que eu acho, Winifred? — disse Francisca. — Ninguém pode amar Levindo suficientemente. Ele é bom demais. Puro demais.
Estica esse jornal aí para eu cortar direito — disse Winifred. — E não vai me dizer que você está apaixonada a este ponto.
Não estou tanto quanto Levindo merece, isso eu garanto.
Assim, para deixar a data em cima da folha — disse Winifred. — Mas quer dizer então que você está disposta a ficar em casa cuidando das crianças.
Francisca riu.
Não vão ser crianças dessas que andam por aí. São os filhos de Levindo, que vai fazer um mundo novo para as crianças morarem.
Ai, ai — suspirou Winifred —, é difícil emancipar as mulheres.
Antonio Callado, in Quarup

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