Ah!
Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a sua
pergunta porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra
“acreditar”. Qualquer que fosse a resposta que lhes desse haveria
um mal-entendido. As palavras são enganosas... Palavras são bolsos
vazios. À medida em que a vida passa a gente vai pondo coisas dentro
do bolso. O sentido do bolso é dado pelas coisas que pomos dentro
dele. O bolso que tem o nome “Deus” fica então cheio das
quinquilharias que nós colocamos dentro dele. Assim, quando falamos
sobre Deus não falamos sobre Deus. Falamos sobre as coisas que
guardamos dentro desse bolso. Muitas pessoas guardam mortes e
castigos, outras guardam jardins... “Acreditar”, no sentido comum
que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que
ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres,
castigos divinos, inferno, céu, purgatório... No meu bolso sagrado
“acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio com
palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não
exista. Eu amo o que não existe. Lembro-me das palavras de Valéry:
“Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”.
No meu bolso “Deus” eu guardo a beleza. Para mim, a beleza é
sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande
Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói a sua
teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está
dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim,
como a aranha. Teço a minha teia com poesia e música. De Deus só
temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus no mundo. Sobre ele –
ou ela – deve-se calar, embora as religiões sejam por demais
tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam
possuidoras do monopólio das palavras certas, a que dão o nome de
dogmas. “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que
não o conhecêssemos. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem
dúvida que viria falar comigo e entraria pela porta dentro
dizendo-me ‘Aqui estou!’” (Caeiro). E de acordo também com
Walt Whitman: “E à raça humana eu digo: – Não seja
curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso sobre Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto
eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em
todos os objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um
pouquinho...”. Não gosto de falar o nome “Deus” porque ele se
presta a grandes confusões. Mas tenho um bolso com o nome “o
Grande Mistério”. Mas não sei o que está dentro dele.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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