Não
foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade
lhe pareceu bom sinal. O apartamento térreo ficava na esquina de um
beco e entre as pedras do chão crescia capim — ela o notou porque
sempre notava o que era pequeno e insignificante. Pensou vagamente
enquanto tocava a campainha da porta: capim é tão fácil e simples.
Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía
muita liberdade interior.
A
própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com naturalidade e disse:
– O
meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver, minha
queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é? É muito lindo. Entre,
meu benzinho. Tenho uma cliente na salinha dos fundos, você espera
aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?
Macabéa
sentou-se um pouco assustada porque faltavam-lhe antecedentes de
tanto carinho. E bebeu com cuidado pela própria frágil vida, o café
frio e quase sem açúcar. Enquanto isso olhava com admiração e
respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo. Matéria plástica
amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico
era o máximo. Estava boquiaberta.
Afinal
saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito vermelhos e madama
Carlota mandou Macabéa entrar. (Como é chato lidar com fatos, o
cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história
que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim.
Não me responsabilizo pelo que agora escrevo). Continuemos, pois,
embora com esforço: madama Carlota era enxundiosa, pintava a
boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas
rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio
quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar esta história.
Descrever me cansa.)
– Não
tenha medo de mim, sua coisinha engraçadinha. Porque quem está ao
meu lado, está no mesmo instante ao lado de Jesus. E apontou o
quadro colorido onde havia exposto em vermelho e dourado o coração
de Cristo.
– Eu
sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha,
quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida
fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando
eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou
um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa
de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este
apartamentozinho térreo. Larguei a casa de mulheres porque era
difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me
roubar. Você está interessada no que eu digo?
– Muito.
– Pois
faz bem porque eu não minto. Seja também fã de Jesus porque o
Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha
que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia
consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele até me conseguiu
dinheiro para ter mobília de grã-fino?
– Sim
senhora.
– Ah,
então você também acha, não é? Pelo que vejo você: é
inteligente, ainda bem, porque a inteligência me salvou. Madama
Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás
do outro e ia enchendo a boca pequena. Não ofereceu nenhum a
Macabéa. Esta, que, como eu disse, tinha tendência a notar coisas
pequenas, percebeu que dentro de cada bombom mordido havia um líquido
grosso. Não cobiçou o bombom pois aprendera que as coisas são dos
outros.
– Eu
era pobre, comia mal, não tinha roupas boas. Então caí na vida. E
gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha carinho por todos
os homens. Além do mais, na zona era divertido porque havia muita
conversa entre as coleguinhas. Nos éramos muito unidas e só de vez
em quando eu me atracava com uma. Mas isso também era bom, porque eu
era muito forte e gostava de bater, de puxar cabelos e morder. Por
falar em morder, você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha;
todos branquinhos e brilhantes. Mas se estragaram tanto que hoje uso
dentadura postiça. Você acha que se nota que são postiços?
– Não
senhora.
– Olhe,
eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só uma vez me caiu
uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais tolerante do que
as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu. Eu
tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava
porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele
era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra
eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era
amor, com os outros eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu,
para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de mulher é
muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você é delicada
demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir
uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito
mais fino. Você tem chance de ter uma mulher?
– Não
senhora.
– É
que também você nem se enfeita. Quem não se enfeita, por si mesma
se enjeita. Ai que saudades da zona! Eu peguei o melhor tempo do
Mangue que era frequentado por verdadeiros cavalheiros. Além do
preço fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer que o Mangue
está acabando, que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas. Em
meu tempo havia umas duzentas. Eu ficava em pé encostada na porta
vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente. Depois, quando
eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes, é que me
tornei caftina. Você sabe o que quer dizer caftina? Eu uso essa
palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente que se assusta
com o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?
– Tenho,
sim senhora.
– Então
vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão, fique sossegada.
Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro insuportável. No meu tempo a
gente punha incenso queimando para dar um ar limpo na casa. Até
tinha cheiro de igreja. E tudo era muito respeitoso e com muita
religião. Quando eu era mulher-dama já ia juntando meu dinheirinho,
dando porcentagem à chefa, é claro. De vez em quando havia tiros
mas nada comigo. Minha florzinha, estou te aborrecendo com minha
história? Ah, não? Você tem paciência de esperar pelas cartas?
– Tenho,
sim senhora.
Então
madama Carlota contou-lhe que lá no Mangue, no seu cubículo, havia
enfeites lindos nas paredes.
– Você
sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom? Faz bem à saúde. Você
já sentiu cheiro de homem?
– Não
senhora.
Finalmente,
depois de lamber os dedos, madama Carlota mandou-a cortar as cartas
com a mão esquerda, ouviu minha adoradinha?
Macabéa
separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um
destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na sua
existência. Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para
desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à pele
arregalou os olhos.
– Mas,
Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó
de você, filhinha! Mas que horror!
Macabéa
empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.
Madama
acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que ela mal
conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta
má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre
julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se
tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou:
– Quanto
ao presente, queridinha, está horrível também. Você vai perder o
emprego e já perdeu o namorado, coitada de vocezinha. Se não puder,
não me pague a consulta, sou madama de recursos. Macabéa, pouco
habituada a receber de graça, recusou a dádiva mas com o coração
todo grato.
– E
eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da madama se
acendeu todo iluminado:
– Macabéa!
Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor,
porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito
séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais:
vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você
vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu
namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu
chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.
Macabéa
nunca tinha tido coragem de ter esperança. Mas agora ouvia a madama
como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus
— enquanto
suportava uma trombeta vinda dos céus — Enquanto suportava uma
forte taquicardia. Madama tinha razão: Jesus enfim prestava atenção
nela. Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo
futuro (explosão). E eu também estou com esperança enfim.
– E
tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em
horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum
estrangeiro?
– Não
senhora — disse Macabéa já desanimando.
– Pois
vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos
ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu exnamorado, esse
gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra
coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também
ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e
é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os
gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe
dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se vestir com veludo
e cetim e até casaco de pele vai ganhar!
Macabéa
começou (explosão) a tremilicar toda por causa do lado penoso que
há na excessiva felicidade. Só lhe ocorreu dizer:
– Mas
casaco de pele não precisa no calor do Rio...
– Pois
vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não boto cartas tão boas. E
sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer
para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada, ela até
chorou muito, viu os olhos avermelhados dela? E agora vou lhe dar um
feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não
tem seio, coitada, bem em contacto com a pele. Você não tem busto
mas vai engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não engordar,
ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem.
Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus
a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou
para um asilo de crianças, Mas se não puder, não pague, só venha
e pagar quando tudo acontecer.
– Não,
eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a senhora é... Estava meio
bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe tinham dado um
forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão
desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade.
Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros
chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.
– E
que é que eu faço para ter mais cabelo? – ousou perguntar porque
já se sentia outra.
– Você
está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com sabão
Aristolino, não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu não
cobro.
Até
isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais cabelo?
Esquecera
Olímpico e só pensava no gringo: era sorte demais pegar homem de
olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia como errar,
era vasto o campo das possibilidades.
– E
agora — disse a madama — você vá embora para encontrar seu
maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra freguesa esperando,
demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a pena! Num súbito
ímpeto (explosão) de vivo impulso Macabéa, entre feroz e
desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. E sentiu de
novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo: pois era bom
beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar,
beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria. Madama
Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava espantada. Só então
vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o
seu lado oposto, ela que, como disse, até então se julgava feliz.
Saiu
da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo
crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos
ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e
ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro
esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um
pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já
estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a
palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra
pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança
tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era
mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho.
Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara
sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que
ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam
como o sol que morria. Então ao dar o passo de descida da calçada
para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e
guloso: é agora é já, chegou a minha vez!
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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