quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Carta aos alagoanos

Meus raros amigos de Alagoas:
 
Depois de longa ausência, aqui me vejo a conversar com vocês, como se nos achássemos em Palmeira dos Índios, na Imprensa Oficial, no café do Cupertino ou numa das redações onde batíamos papo. Não sei bem se a conversa é impertinente. Uma única vez, depois de nos separarmos, tive ensejo de falar sobre pessoas e fatos alagoanos: referi-me a Nelson Flores, a Pedro Lima e às enchentes, mas parece que estes assuntos foram aí considerados impróprios.
Arrisco-me a nova palestra, ou antes sou obrigado a ela. Nestes últimos dez anos o mundo tem dado tantas voltas que estive a ponto de fazer uma viagem a Alagoas, só abandonando a ideia porque, tendo aqui aportado em porão de navio muito vagabundo, não achei conveniente regressar num aeroplano. Perdoem-me a citação de pequeninos casos pessoais, absolutamente desprovidos de interesse. Mas convém talvez lembrá-los.
Não é que resolveram fazer de mim candidato a deputado? Vejam só. Pois nesse caráter dirijo-me a vocês — duas dúzias de pessoas, se tanto, o público de que disponho na terra dos marechais e dos generais. Seria adequado exibir-lhes um rol de serviços notáveis, expor diversas obras realizadas e outras possíveis, mas receio que alguém se engane e vote em mim julgando-me sujeito importante, um desses operadores de milagres nunca percebidos. Vocês sabem que não levei o S. Francisco a Quebrangulo, feito aí já praticado com honra e glória.
Aludo, portanto, à minha saída, em 1936, dessa província, caso minguadamente glorioso, que pouco me recomenda à simpatia do eleitor. E com isto declaro não desejar pertencer a qualquer instituição em que seja necessário fazer discursos.
Uvas verdes, pensarão vocês.
De modo nenhum, pois venho pedir — incongruência aparente, que desmancho com esta explicação. Entre ser literato medíocre ou deputado insignificante, prefiro continuar na literatura e na mediocridade. E digo isto sem falsa modéstia. Reparem no sentido exato das palavras. Não considero a minha literatura insignificante: ela é apenas medíocre e, por conseguinte, mais ou menos aceitável. Na livraria sinto-me à vontade. Mas na Câmara é certo que me dariam papel bem chinfrim. Nenhuma conveniência em mudar de ofício neste fim de vida.
Está explicada, suponho, a desambição carecente de valor. Contudo, se me falta o desejo de passar algumas horas por dia cochilando, rosnando apartes chochos, isto não quer dizer que feche os olhos à política nacional e encolha os ombros à eleição. Entreguei-me de corpo e alma a um Partido, o único, estou certo, capaz de livrar-nos da miséria em que vivemos, e este Partido apresenta-se às urnas. Sou forçado a solicitar a vocês, para os nossos candidatos (os outros: insisto em declarar-me isento de pretensões), os vinte e quatro votos que estão dispostos a conceder-me.
Examinem as chapas dos partidos reacionários. Só existem nelas, em toda a parte, figuras da classe dominante. Nós, comunistas, escolhemos gente da burguesia e do proletariado: operários, camponeses, militares, industriais, comerciantes, artistas, professores, médicos, engenheiros, jornalistas, advogados, escritores. Quando nos preparamos para dar ao país uma Constituição, não é razoável agora que ela seja uma Constituição de proprietários.
Vocês, meus excelentes amigos, poderiam contribuir para se afastarem da nova carta alguns desses artigos ou parágrafos em que os infelizes se apertam como em torniquetes. Realmente vocês são bem pouco numerosos. Mas cada um, nestes breves dias que nos restam, convencerá facilmente uma tia ou comadre, que influirá na vizinha com rapidez — e assim por diante. Serão eleitas pessoas que representem o Estado. Porque até hoje — com franqueza — que foi que os nossos deputados representaram?
Com isto, meus velhos amigos, despeço-me de vocês e envio-lhes muitos abraços.
Graciliano Ramos, in Revista do Povo: Cultura e Orientação Popular, janeiro de 1946

Nenhum comentário:

Postar um comentário