quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Aos estudantes

Minhas senhoras
Meus senhores

Preciso revelar a mim mesmo a razão da minha estada aqui. Se conseguir isto, levarei talvez ao espírito dos outros a certeza de que não nos achamos diante de um absurdo. Realmente nos achamos. Confessemos, porém, que um absurdo examinado com atenção deixa muitas vezes de ser absurdo. Despropósitos vários se tornaram fatos normais.
Tentemos, pois, anular, o contrassenso que representa a minha vinda a esta casa, em semelhante situação.
Noticiaram-me que os indivíduos anualmente chamados para desempenhar este papel a mim atribuído foram em regra cidadãos mortos. Esse uso me parece cheio de sabedoria. Em primeiro lugar nenhum deles poderia eximir-se do convite. Em segundo lugar havia um discurso de menos: nenhuma voz de além-túmulo viria exibir aos circunstantes possíveis discrepâncias. E afinal, vantagem preponderante: a uma figura desaparecida facilmente concedemos valor simbólico. Não entra em concorrência conosco, já nenhum mal é capaz de fazer. Os seus defeitos se atenuam, chegam a sumir-se com o tempo; as boas qualidades crescem, e em falta disto entretemo-nos a pendurar nela as virtudes que desejaríamos possuir.
Temeridade, presumo, substituir essa personagem cômoda e inerte por um ser vivo, natural veículo de erros e paixões. As nossas falhas são evidentes, a custo se dissimulariam as nossas fraquezas, limitações, incongruências. Movemo-nos entre quedas, a desgraçada viagem do ventre materno à sepultura é feita de pequenos avanços, recuos, suspensões.
Por que se fez uma escolha em que se ressalta a perda? Que irá contrabalançar tantas inconveniências? Houve um salto — e pergunto a mim mesmo as consequências dele. Aceitavam ontem a imobilidade; hoje preferem o movimento. Que determinou isso? A quietude nos leva a contemplar, talvez a admirar passivamente; a agitação nos força a pesquisar, sondar, criticar. Uma concepção estática e uma concepção dinâmica.
Se a primeira vencia e prevalece a segunda, admitiremos que a juventude, pelo menos uma parte dela aqui presente, em vez de aumentar o prestígio de venerandas múmias, resolveu improvisar uma espécie de soldado desconhecido, apenas diferente do outro porque ainda não se enterrou. Decidiu largar a coisa distante e abrir os olhos à realidade próxima; abandonou a história e as antologias, quis ver de perto um homem da rua, vulgar, sujeito que neste momento segura uma folha de papel e amanhã poderá viver na cadeia ou no hospício.
Sendo assim, os protestos e agradecimentos e as tiradas de modéstia falsa tornam-se inúteis, pois significo uma partícula na multidão, a ela regressarei finda esta cerimônia, a que não me acomodo bem. Evidentemente não lhes direi frases difíceis e pomposas, dessas que analisaram no primeiro ano e graças a Deus esqueceram. Sinto-me como se viajasse pingente — e utilizo a linguagem dos pingentes, áspera, sem adorno. Impossível manifestar-me de outro modo. E o pior é não me surgirem ideias serenas que venham ressarcir a deficiência da forma.
Certo não me ocorreu oferecer aos moços conselhos enfadonhos: cabelos brancos e rugas fraca autoridade me proporcionariam para tais rabugices. Devo então felicitá-los, fazer-lhes zumbaias, cantar loas, afirmar que entrarão na luta com boas armas e se arranjarão todos em lugares magníficos? Essas adivinhações seriam naturalmente recebidas com agrado, mas ignoro que surpresa o futuro nos reserva, não sou profeta. E, para falar com franqueza, estou longe de agourar aos meus amigos a paz, o cargo bem remunerado, o sono tranquilo, isento de sonhos. Nada ganharíamos com isso. Não espero que sejam felizes: espero que sejam úteis.
Quando nos retirarmos desta sala, quase todos nos resignaremos a entrar numa fila de ônibus, aguardaremos com paciência a vez de nos sacolejarmos, aos trambolhões. E a certeza de que outros indivíduos, insignificante minoria, cochilam em automóveis, rolando sobre pneumáticos silenciosos, não nos trará nenhum conforto.
Receio que estas palavras soem mal em numerosos ouvidos. A culpa é dos rapazes que, insensíveis às nossas glórias, voltaram as costas ao passado, quiseram saber a opinião de um transeunte. Dirijo-me a eles de coração aberto. Não, meus caros amigos, não lhes desejo felicidade. Seria o mesmo que desejar-lhes a morte.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Discurso proferido pelo escritor alagoano em dezembro de 1946, do Instituto Lafayette, Rio de Janeiro)

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