1
Na
parede ao fundo, sobre o sofá onde Norma brilhava, o maldito quadro
tirava o olhar de todo mundo para dançar. Perseu matando a Medusa.
Cabelos de serpentes, a Medusa transforma em pedra todo mundo que a
fita, fita, fita, pedra, pedra, pedra. Perseu chega, a espada numa
mão, um espelho na outra. Vendo-a no espelho, corta-lhe a cabeça. O
quadro representa Perseu no exato momento em que ergue a cabeça
decepada da Medusa. Mas o espelho onde viu, imune a seus poderes, o
rosto do monstro, ainda jaz a seus pés.
Nesse
espelho, muita, muita, muita coisa.
2
Lancei
até Propp o olhar mais parecido com uma pergunta de que meus olhos
foram capazes.
— Vejamos.
Fotos de mulheres nuas, gosta de ver?
— Não
mais nem menos que todo mundo.
— Livros
assim desses, você sabe?
— Alguns
lá em casa o senhor precisava ver.
— Nome
de algum?
— “Sete
Noites em Sodoma e Gomorra”, “Teatro dos Prazeres”, “A Noite
das Massagistas”, “O Bem Dotado e Suas Sete Amantes”, “O
Banho de Língua”, “Triângulo das Delícias”, coisas assim.
— Escoptofilia.
— Isso
é ruim?
— Quando
criança assistiu alguma vez?
— Assistir
o quê?
— Você
sabe. Os dois.
— Os
dois?
— É,
papai e mamãe, você sabe, ora, como você sabe!
— Pena
que nossa história tenha que terminar assim, cortei rente.
Passei por Norma, e joguei o olhar que melhor significasse, assim não
brinco mais, lamentável que tudo tenha que ter sido desse jeito, não
fui eu que inventei o mundo nem a vida nem a maldita hora em que me
convidaram para vir virar pedra, pedra, pedra, fita, fita, fita,
nesta festa filhadaputa, enfim, essa história toda está muito
mal contada.
3
Me
olhei no grande espelho do salão, e a festa atrás de mim, falsas
marquesas e pseudovirgens, semiartistas e quase milionários,
mordomos solenes como cardeais e sujeitos de muitos negócios e
interesses. De relance, meu companheiro de consultas ao professor
Propp, aquele, vocês sabem, que acreditava ter uma
microbomba-atômica implantada no cérebro. Estava mais calmo, dava
um gole, e parecia ter desistido, por hora, de mandar o mundo de
volta para a puta ou para o deus que, um dia, o pariu. A bebida tinha
amolecido seu coração, e se abraçava com o corrimão da escada,
beijando-o como se fosse.
O
dono da casa e da festa passou e parou, o tipo que tinha conversado
comigo há pouco lá atrás.
— Gostando?,
começou, e logo estava me contando como sua fortuna havia começado.
Antes
de tudo, tinha sido ladrão de arte sacra. E me contava isso como se
o sagrado dos retábulos e dos turíbulos, das estatuetas e dos
cibórios, como se a santidade dessas coisas tivesse passado para
seus milhões atuais.
— Deve
ter dado sorte, não acha?
Devo
ter respondido qualquer coisa relativa ao caráter sagrado do
dinheiro. Mas não me lembro bem, como, aliás, não me lembro bem de
nada. O diabo me coma o cu se eu se eu estava entendendo alguma
coisa daquela coisa toda.
4
Só
Norma que não. Uma porção de mulheres naquela festa me mandando
aquele olhar que a gente reconhece de longe. E longe elas estavam,
muito longe, Andrômeda, Órion, estrelas da Ursa Maior, maravilhas
na distância, escoptofilia.
Norma
eu vi no espelho. E ouvi sua voz adocicada, coentro, pimenta, canela,
cravo, salsa, creme de leite com queijo parmesão por cima, uma voz
com todos os temperos. Estava bebendo há horas. Ou era anos, há
séculos, há milênios? Era como se eu estivesse bebendo desde o
início dos tempos, desde o primordial era uma vez um universo que
pensava que era feito só de matéria, bebia desde a eterna coisa
alguma donde tinha vindo, bebendo até o permanente nunca mais para
onde eu, nós, a festa, a casa, tudo, irremediavelmente, íamos.
— Ar!,
pensei.
Ar
é sempre uma ótima ideia. E lá fui atrás de ar, com o máximo de
elegância e sangue-frio de que pude dispor no sufoco daquela
euforia.
5
Não
longe de Sírius, a mais brilhante das estrelas da constelação do
Cão Maior, um tênue ponto de luz, a estrela, consideravelmente
menor, conhecida como o Cachorro. Embora de dimensões pequenas, seu
núcleo contém matéria tão densa que a quantidade dessa matéria
necessária para encher uma caixa de fósforos (tem fogo?) pesaria 50
toneladas.
Agora,
imagine-se uma estrela feita de matéria tão densa que a
quantidade dessa matéria suficiente para encher uma caixa de
fósforos pesasse 10.000 milhões de toneladas. Nem mesmo a 1080
milhões de quilômetros por hora — a velocidade da luz — seria
possível vencer a absoluta força de gravidade dessa estrela. A
própria luz, com seus 300.000 quilômetros por segundo, estaria
sujeita a essa força, o que tornaria essa estrela para sempre
invisível.
Existem
estrelas assim.
6
Não
chovia mais. E a chuva tinha deixado entre as árvores em volta da
casa aquela sensação de vazio que a chuva tem a mania de deixar
depois que chove até o cu fazer bico. Um vazio rápido, como se
fosse artificial. Então, eu ouvi:
Se
esta casa,
se
esta casa fosse minha,
eu
mandava,
eu
mandava ladrilhar...
Não
tinha ninguém fora da casa, todo mundo lá dentro, bebendo, comendo,
se mostrando, aparecendo, descolando homem, descolando mulher,
fechando negócios, se abrindo, passando.
Andei
atrás da voz. Vinha de um caramanchão, no lado esquerdo do jardim.
Se
esta casa,
se
esta casa fosse minha...
Era
uma menina cantando. Cheguei manso como quem chega para não assustar
passarinho. Perguntei o nome.
Nem
precisei ouvir para, mais que saber, TER CERTEZA.
— Norma,
ela disse, com aquela vozinha de derreter o coração.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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