sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 11

1

Na parede ao fundo, sobre o sofá onde Norma brilhava, o maldito quadro tirava o olhar de todo mundo para dançar. Perseu matando a Medusa. Cabelos de serpentes, a Medusa transforma em pedra todo mundo que a fita, fita, fita, pedra, pedra, pedra. Perseu chega, a espada numa mão, um espelho na outra. Vendo-a no espelho, corta-lhe a cabeça. O quadro representa Perseu no exato momento em que ergue a cabeça decepada da Medusa. Mas o espelho onde viu, imune a seus poderes, o rosto do monstro, ainda jaz a seus pés.
Nesse espelho, muita, muita, muita coisa.

2

Lancei até Propp o olhar mais parecido com uma pergunta de que meus olhos foram capazes.
Vejamos. Fotos de mulheres nuas, gosta de ver?
Não mais nem menos que todo mundo.
Livros assim desses, você sabe?
Alguns lá em casa o senhor precisava ver.
Nome de algum?
— “Sete Noites em Sodoma e Gomorra”, “Teatro dos Prazeres”, “A Noite das Massagistas”, “O Bem Dotado e Suas Sete Amantes”, “O Banho de Língua”, “Triângulo das Delícias”, coisas assim.
Escoptofilia.
Isso é ruim?
Quando criança assistiu alguma vez?
Assistir o quê?
Você sabe. Os dois.
Os dois?
É, papai e mamãe, você sabe, ora, como você sabe!
Pena que nossa história tenha que terminar assim, cortei rente. Passei por Norma, e joguei o olhar que melhor significasse, assim não brinco mais, lamentável que tudo tenha que ter sido desse jeito, não fui eu que inventei o mundo nem a vida nem a maldita hora em que me convidaram para vir virar pedra, pedra, pedra, fita, fita, fita, nesta festa filhadaputa, enfim, essa história toda está muito mal contada.

3

Me olhei no grande espelho do salão, e a festa atrás de mim, falsas marquesas e pseudovirgens, semiartistas e quase milionários, mordomos solenes como cardeais e sujeitos de muitos negócios e interesses. De relance, meu companheiro de consultas ao professor Propp, aquele, vocês sabem, que acreditava ter uma microbomba-atômica implantada no cérebro. Estava mais calmo, dava um gole, e parecia ter desistido, por hora, de mandar o mundo de volta para a puta ou para o deus que, um dia, o pariu. A bebida tinha amolecido seu coração, e se abraçava com o corrimão da escada, beijando-o como se fosse.
O dono da casa e da festa passou e parou, o tipo que tinha conversado comigo há pouco lá atrás.
Gostando?, começou, e logo estava me contando como sua fortuna havia começado.
Antes de tudo, tinha sido ladrão de arte sacra. E me contava isso como se o sagrado dos retábulos e dos turíbulos, das estatuetas e dos cibórios, como se a santidade dessas coisas tivesse passado para seus milhões atuais.
Deve ter dado sorte, não acha?
Devo ter respondido qualquer coisa relativa ao caráter sagrado do dinheiro. Mas não me lembro bem, como, aliás, não me lembro bem de nada. O diabo me coma o cu se eu se eu estava entendendo alguma coisa daquela coisa toda.

4

Só Norma que não. Uma porção de mulheres naquela festa me mandando aquele olhar que a gente reconhece de longe. E longe elas estavam, muito longe, Andrômeda, Órion, estrelas da Ursa Maior, maravilhas na distância, escoptofilia.
Norma eu vi no espelho. E ouvi sua voz adocicada, coentro, pimenta, canela, cravo, salsa, creme de leite com queijo parmesão por cima, uma voz com todos os temperos. Estava bebendo há horas. Ou era anos, há séculos, há milênios? Era como se eu estivesse bebendo desde o início dos tempos, desde o primordial era uma vez um universo que pensava que era feito só de matéria, bebia desde a eterna coisa alguma donde tinha vindo, bebendo até o permanente nunca mais para onde eu, nós, a festa, a casa, tudo, irremediavelmente, íamos.
Ar!, pensei.
Ar é sempre uma ótima ideia. E lá fui atrás de ar, com o máximo de elegância e sangue-frio de que pude dispor no sufoco daquela euforia.

5

Não longe de Sírius, a mais brilhante das estrelas da constelação do Cão Maior, um tênue ponto de luz, a estrela, consideravelmente menor, conhecida como o Cachorro. Embora de dimensões pequenas, seu núcleo contém matéria tão densa que a quantidade dessa matéria necessária para encher uma caixa de fósforos (tem fogo?) pesaria 50 toneladas.
Agora, imagine-se uma estrela feita de matéria tão densa que a quantidade dessa matéria suficiente para encher uma caixa de fósforos pesasse 10.000 milhões de toneladas. Nem mesmo a 1080 milhões de quilômetros por hora — a velocidade da luz — seria possível vencer a absoluta força de gravidade dessa estrela. A própria luz, com seus 300.000 quilômetros por segundo, estaria sujeita a essa força, o que tornaria essa estrela para sempre invisível.
Existem estrelas assim.

6

Não chovia mais. E a chuva tinha deixado entre as árvores em volta da casa aquela sensação de vazio que a chuva tem a mania de deixar depois que chove até o cu fazer bico. Um vazio rápido, como se fosse artificial. Então, eu ouvi:

Se esta casa,
se esta casa fosse minha,
eu mandava,
eu mandava ladrilhar...

Não tinha ninguém fora da casa, todo mundo lá dentro, bebendo, comendo, se mostrando, aparecendo, descolando homem, descolando mulher, fechando negócios, se abrindo, passando.
Andei atrás da voz. Vinha de um caramanchão, no lado esquerdo do jardim.

Se esta casa,
se esta casa fosse minha...

Era uma menina cantando. Cheguei manso como quem chega para não assustar passarinho. Perguntei o nome.
Nem precisei ouvir para, mais que saber, TER CERTEZA.
Norma, ela disse, com aquela vozinha de derreter o coração.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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