Como
entrar em um livro? Por que gargantas descer até lhe tocar o fundo?
Tenho perseguido, cada vez mais, uma leitura íntima. Uma leitura
que, em vez de deslizar pelo brilho das páginas, realize uma descida
vertical, rumo ao centro obscuro das ficções. Uma viagem vertical
ao coração da literatura – e aqui tomo de empréstimo a expressão
de Enrique Vila-Matas, em seu fabuloso romance A viagem vertical,
de 1999. Viagem que seu protagonista, Frederico Mayol, define como
uma descida “em direção à incerteza”.
É
o que tento, outra vez, na leitura dos 14 contos, do japonês
Kenzaburo Oe (Companhia das Letras, seleção e tradução de Leiko
Gotoda, introdução de Arthur Dapieve). Perfilo-me diante do livro
como se me detivesse à entrada de um grande palácio, decorado com
catorze portas. Avanço na leitura, e essas entradas, como veias, se
multiplicam. Preciso escolher uma porta: rumo, então, em direção a
“Os pássaros”, o relato que se guarda na página 96.
Por
que o escolho? Entre os belos contos de Kenzaburo, nenhum fala mais
diretamente da própria literatura que “Os pássaros”. É a
história de um rapaz de 20 anos que conversa com aves inexistentes.
Vive trancado em seu quarto, um cômodo cheio de pássaros, que batem
as asas freneticamente sobre seu corpo, “fazendo-as farfalhar como
folhas numa floresta”. Vive, ele também, sua viagem vertical em
direção ao centro da existência. Perfura sua vida – assim como
tento perfurar o relato de Oe – na esperança de que a
desestabilização e o desassossego lhe sirvam de caminho.
O
rapaz sabe que está sozinho. “Esses sujeitos, do lado de fora, não
têm olhos para vê-los, nem ouvidos capazes de detectar o ruflar de
suas asas e jamais conseguirão apanhá-los.” A cegueira das
figuras que circulam pelo mundo exterior não só protege os pássaros
de ataques cruéis, mas o próprio rapaz, que se conserva em seu voo
interior. Um voo que se assemelha a uma queda. Em quê? Em si.
É
como se, diante do conto de Oe, eu lançasse uma corda e descesse por
poço escuro. Preciso sustentar minha descida. O rapaz se recusa a
sair de seu quarto. Ele controla os pássaros (ficção), mas não a
realidade externa (pacto, convenções, arbítrio). Não se importa:
a realidade não possui nem a gentileza nem a delicadeza das aves.
Elas, sim, como uma manta invisível, o agasalham.
Um
dia, chega um visitante. A mãe o apresenta: “Essa pessoa quer
falar com você a respeito dos pássaros”. Ele se anuncia (áspera
ficção) como um especialista em pássaros. Na verdade, é um
psicólogo. Com uma conversa amorosa, usando palavras doces e
traiçoeiras, convence o rapaz de seu real interesse pelas aves que o
cercam.
Os
pássaros lhe surgiram depois que abandonou a faculdade. “Porque me
dei conta de que, excetuando os pássaros, todos eram estranhos para
mim.” Às vezes, levita em meio às aves, enquanto elas batem suas
asas com fúria. “Amparado nessa profusão de asas, meu corpo chega
a flutuar”, diz. Escapa, então, da realidade conhecida. Do pacto
surrado a que chamamos de realidade. Nesse momento de elevação,
desgruda-se do chão para colar-se a si. A ficção é sua cola.
Acaricia de leve, então, a face neutra do real, que é inacessível
e impenetrável.
O
rapaz chega a admitir que “há algo sexual” em sua relação com
as aves. O psicólogo, então, convence-o a acompanhá-lo. Comovido
por encontrar um amigo, o rapaz cede. Os pássaros ainda se
manifestam dentro do carro, o que convence o rapaz, em definitivo, de
sua existência. “Eles são realmente parte de mim”, pensa. Pensa
mais: que estranhas são as pessoas que não possuem pássaros
(ficções)!
O
instituto é, na verdade, um asilo psiquiátrico. O homem se
transfigura: é submetido a um tratamento à base de brutalidade e
violência. É despido – e ele se agarra, como um pássaro
despenado, à rala penugem que tem entre as pernas. A ideia do
psicólogo é “tirar” (matar) os pássaros que cercam
(enlouquecem?) o rapaz. Tirar a única coisa bela que ele tem. Há
uma metamorfose: o homem se torna arrogante e prepotente – a
ficção, para ele, é inadmissível. Quando dá por si, o rapaz já
é um interno. Perdeu-se de si.
“Me
dá raiva ver loucos não convictos como você”, o psicólogo
reclama. Dois pássaros, muito tênues, ainda surgem em torno do
rapaz, mas ele, irritado e decepcionado, logo os espanta. Conclui que
conversar com pássaros é “apenas um truquezinho para enganar
crianças”. Perdeu-se de si e de seu sonho. Sem os pássaros, nada
tem. Pior: sem sua fantasia, nada é. Torna-se um trapo – sombra,
inerte, do que foi. Diante de um derradeiro esboço de reação, leva
um chute feroz do psicólogo (último ataque contra o sonho) e bate a
cabeça (casa da fantasia) contra o vidro de uma janela. A parede
dura da realidade bloqueia seu caminho. Nela se gruda, como uma mosca
que dorme no teto.
A
narrativa dá um salto – uma elipse substitui o tempo em que esteve
desacordado. Já está de volta ao seu quarto, com dores lancinantes,
a cabeça envolta em bandagens. A mãe e os irmãos, arrependidos, o
levaram para casa. Com carinho, a mulher lhe serve uma sopa quente,
que sorve com dificuldades. A mãe afirma, de repente, que, já pode
ver os pássaros que antes negava. “Creio nisso agora”, exclama.
O rapaz, porém, já não pode vê-los. Cegou-se. É a mãe, enfim,
quem se apega à fantasia (ficção) para suportar a realidade
brutal. Que tenta se sustentar no mundo com o apoio da ficção. O
rapaz ainda pensa: “Na certa terei de levar uma vida insuportável
de agora em diante. Além de tudo, com uma mulher louca seguindo-me
por toda a parte”.
A
viagem do rapaz rumo ao vazio se parece com um livro rasgado. Tudo o
que tinha, tão pouco, lhe foi roubado. Pior: aprendeu a odiar o que
tinha de melhor. Horror da ficção: para os que a negam, ela se
torna insuportável. Mas encará-la, como faz o rapaz dos pássaros,
é avançar em um túnel profundo, onde só passa uma pessoa de cada
vez. Ninguém sonha acompanhado: o sonho é o último reduto do Um.
Ao abandoná-lo, o rapaz se desfigura. Seu corpo, derramado no chão
duro do quarto, evoca um punhado de sementes mortas, que pássaro
algum sorverá.
José
Castello, in Sábados inquietos
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