domingo, 4 de agosto de 2019

06/11/92 - 00:08

Esta noite, me sinto envenenado, mijado, usado, gasto até o osso. Não é só a velhice, mas pode ter algo a ver com isso. Acho que a multidão, aquela multidão, a Humanidade, que sempre foi difícil pra mim, aquela multidão está ganhando, afinal. Acho que o grande problema é que tudo é uma performance repetida pra eles. Não há novidade neles. Nem mesmo o menor dos milagres. Apenas se arrastam sobre mim. Se, um dia, eu pudesse ver UMA pessoa fazendo ou dizendo algo incomum me ajudaria a seguir em frente. Mas são rançosos, bolorentos. Não há emoção. Olhos, ouvidos, pernas, vozes, mas... nada. Congelam-se dentro de si mesmos, se enganam, fingindo que estão vivos.
Era melhor quando eu era jovem, eu ainda procurava. Percorria as ruas à noite procurando, procurando... me misturando, lutando, buscando... Não encontrei nada. Mas o cenário geral, o nada, ainda não tinha tomado conta. Nunca encontrei um amigo de verdade. Com as mulheres, havia esperança com cada uma, mas isso era no princípio. Mesmo no começo, eu saquei, parei de procurar a Garota Ideal; eu só queria uma que não fosse um pesadelo.
Com as pessoas, tudo que encontrei foram os vivos que agora estavam mortos – nos livros, na música clássica. Mas isso ajudava, por um tempo. Mas havia apenas uns poucos livros mágicos e interessantes, daí parou. A música clássica era meu baluarte. Escutava muito no rádio, ainda escuto. E sempre me surpreendo, mesmo agora, quando escuto algo forte, novo, que não ouvi antes, e isso acontece com bastante frequência. Enquanto escrevo agora, estou escutando algo no rádio que nunca ouvi antes. Me empapuço de cada nota como um homem faminto de sangue novo e novo significado e lá estão. Fico absolutamente admirado pela grande quantidade de excelentes músicas, séculos e séculos delas. É possível que muitas grandes almas tenham existido. Não posso explicar, mas é uma grande sorte eu ter isso na vida, sentir isso, me alimentar disso e festejar. Nunca escrevo nada sem ter o rádio ligado com música clássica, sempre foi parte do meu trabalho, escutar esta música enquanto escrevo. Talvez, algum dia, alguém me explique por que há tanta energia do Milagre na música clássica. Duvido que algum dia alguém me diga isso. Só me resta imaginar. Por quê, por quê, por que não existem mais livros com esse poder? O que está errado com os escritores? Por que existem tão poucos bons?
O rock não me toca. Fui a um show de rock mais por causa da minha mulher, Linda. Claro, sou um cara legal, hem, hem? De qualquer forma, os ingressos eram de graça, cortesia de um músico de rock que lê os meus livros. Devíamos ir para um camarote especial para os famosos. Um diretor, ex-ator, veio nos buscar na sua caminhonete esporte. Outro ator estava com ele. São talentosos, do seu jeito, e não são maus seres humanos. Fomos até a casa do diretor, lá estava sua mulher, vimos seu bebê e daí saímos numa limusine. Drinques, conversa. O show era no Dodger Stadium. Chegamos atrasados. A banda estava no palco, um som ensurdecedor, gigante, 25.000 pessoas. Havia uma vibração, mas foi breve. Era muito simplório. Acho que as letras seriam legais se você conseguisse ouvi-las. Provavelmente, falavam de Causas, Decências, Amor achado e perdido etc. As pessoas precisam daquilo – anti-sistema, anti-pais, anti-alguma coisa. Mas uma banda milionária e bem-sucedida como aquela, independentemente do que disser, AGORA FAZIA PARTE DO SISTEMA.
Depois de um certo tempo, o líder da banda disse: “Este show é dedicado a Linda e Charles Bukowski!”. 25.000 pessoas aplaudiram como se soubessem quem éramos. Isso é pra morrer de rir.
Grandes estrelas do cinema andavam por ali. Já os tinha encontrado antes. Me preocupei com isso. Fiquei preocupado que diretores e atores viessem à nossa casa. Eu não gostava de Hollywood, os filmes raramente me emocionavam. O que eu estava fazendo ali, com aquelas pessoas? Será que estava sendo sugado? 72 anos brigando a briga certa para ser sugado?
O show quase tinha terminado e seguimos o diretor para o bar VIP. Estávamos entre os eleitos. Puxa!
Lá dentro, havia mesas, um bar. E os famosos. Fui até o bar. Os drinques eram de graça. Havia um enorme barman preto. Pedi meu drinque e disse a ele:
Depois que eu tomar esse, vamos voltar lá e atacar”.
O barman sorriu.
Bukowski!”
Você me conhece?”
Costumava ler suas Notas de um Velho Safado na L.A. Free Press e Open City.
Bem, quem diria...”
Apertamos as mãos. A luta foi cancelada.
Linda e eu falamos com várias pessoas, não sei sobre o quê. Eu continuava voltando ao bar a toda hora para pegar a minha vodka 7’s. O barman me servia em copos altos. Eu também tinha bebido na limusine no caminho para o show. A noite ficou mais fácil pra mim, era só uma questão de beber bastante, rápido e com frequência.
Quando o astro do rock chegou, eu já estava mais pra lá do que pra cá, mas ainda estava aqui. Ele sentou e conversamos, mas não lembro sobre o quê. Daí chegou a hora do black-out. Evidentemente fomos embora. Só sei porque me contaram depois. A limusine nos levou de volta pra casa. Quando cheguei em casa, tropecei nos degraus, caí e bati a minha cabeça nos tijolos. Recém tínhamos colocado os tijolos. Cortei a cabeça e machuquei a mão direita e as minhas costas.
Descobri a maior parte disso de manhã, quando levantei pra dar uma mijada. Havia o espelho. A minha aparência era a dos velhos tempos das brigas de bar. Cristo. Lavei um pouco do sangue, dei comida aos nossos nove gatos e voltei pra cama. A Linda também não estava se sentindo bem. Mas ela tinha visto seu show de rock.
Sabia que não conseguiria escrever por três ou quatro dias e que demoraria uns dois para voltar ao hipódromo.
De volta para a música clássica. Fui homenageado e tudo mais. Era legal que os astros do rock lessem o meu trabalho, mas sabia de homens nas cadeias e nos hospícios que também liam. Não posso controlar quem lê o meu trabalho. Esqueça.
É bom sentar aqui esta noite, neste quartinho no segundo andar, ouvindo o rádio, o velho corpo, a velha mente remendando. Aqui é o meu lugar, assim. Assim. Assim.
Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

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