Esta
noite, me sinto envenenado, mijado, usado, gasto até o osso. Não é
só a velhice, mas pode ter algo a ver com isso. Acho que a multidão,
aquela multidão, a Humanidade, que sempre foi difícil pra mim,
aquela multidão está ganhando, afinal. Acho que o grande problema é
que tudo é uma performance repetida pra eles. Não há novidade
neles. Nem mesmo o menor dos milagres. Apenas se arrastam sobre mim.
Se, um dia, eu pudesse ver UMA pessoa fazendo ou dizendo algo incomum
me ajudaria a seguir em frente. Mas são rançosos, bolorentos. Não
há emoção. Olhos, ouvidos, pernas, vozes, mas... nada. Congelam-se
dentro de si mesmos, se enganam, fingindo que estão vivos.
Era
melhor quando eu era jovem, eu ainda procurava. Percorria as ruas à
noite procurando, procurando... me misturando, lutando, buscando...
Não encontrei nada. Mas o cenário geral, o nada, ainda não tinha
tomado conta. Nunca encontrei um amigo de verdade. Com as mulheres,
havia esperança com cada uma, mas isso era no princípio. Mesmo no
começo, eu saquei, parei de procurar a Garota Ideal; eu só queria
uma que não fosse um pesadelo.
Com
as pessoas, tudo que encontrei foram os vivos que agora estavam
mortos – nos livros, na música clássica. Mas isso ajudava, por um
tempo. Mas havia apenas uns poucos livros mágicos e interessantes,
daí parou. A música clássica era meu baluarte. Escutava muito no
rádio, ainda escuto. E sempre me surpreendo, mesmo agora, quando
escuto algo forte, novo, que não ouvi antes, e isso acontece com
bastante frequência. Enquanto escrevo agora, estou escutando algo no
rádio que nunca ouvi antes. Me empapuço de cada nota como um homem
faminto de sangue novo e novo significado e lá estão. Fico
absolutamente admirado pela grande quantidade de excelentes músicas,
séculos e séculos delas. É possível que muitas grandes almas
tenham existido. Não posso explicar, mas é uma grande sorte eu ter
isso na vida, sentir isso, me alimentar disso e festejar. Nunca
escrevo nada sem ter o rádio ligado com música clássica, sempre
foi parte do meu trabalho, escutar esta música enquanto escrevo.
Talvez, algum dia, alguém me explique por que há tanta energia do
Milagre na música clássica. Duvido que algum dia alguém me diga
isso. Só me resta imaginar. Por quê, por quê, por que não existem
mais livros com esse poder? O que está errado com os escritores? Por
que existem tão poucos bons?
O
rock não me toca. Fui a um show de rock mais por causa da minha
mulher, Linda. Claro, sou um cara legal, hem, hem? De qualquer forma,
os ingressos eram de graça, cortesia de um músico de rock que lê
os meus livros. Devíamos ir para um camarote especial para os
famosos. Um diretor, ex-ator, veio nos buscar na sua caminhonete
esporte. Outro ator estava com ele. São talentosos, do seu jeito, e
não são maus seres humanos. Fomos até a casa do diretor, lá
estava sua mulher, vimos seu bebê e daí saímos numa limusine.
Drinques, conversa. O show era no Dodger Stadium. Chegamos atrasados.
A banda estava no palco, um som ensurdecedor, gigante, 25.000
pessoas. Havia uma vibração, mas foi breve. Era muito simplório.
Acho que as letras seriam legais se você conseguisse ouvi-las.
Provavelmente, falavam de Causas, Decências, Amor achado e perdido
etc. As pessoas precisam daquilo – anti-sistema, anti-pais,
anti-alguma coisa. Mas uma banda milionária e bem-sucedida como
aquela, independentemente do que disser, AGORA FAZIA PARTE DO
SISTEMA.
Depois
de um certo tempo, o líder da banda disse: “Este show é dedicado
a Linda e Charles Bukowski!”. 25.000 pessoas aplaudiram como se
soubessem quem éramos. Isso é pra morrer de rir.
Grandes
estrelas do cinema andavam por ali. Já os tinha encontrado antes. Me
preocupei com isso. Fiquei preocupado que diretores e atores viessem
à nossa casa. Eu não gostava de Hollywood, os filmes raramente me
emocionavam. O que eu estava fazendo ali, com aquelas pessoas? Será
que estava sendo sugado? 72 anos brigando a briga certa para ser
sugado?
O
show quase tinha terminado e seguimos o diretor para o bar VIP.
Estávamos entre os eleitos. Puxa!
Lá
dentro, havia mesas, um bar. E os famosos. Fui até o bar. Os
drinques eram de graça. Havia um enorme barman preto. Pedi meu
drinque e disse a ele:
“Depois
que eu tomar esse, vamos voltar lá e atacar”.
O
barman sorriu.
“Bukowski!”
“Você
me conhece?”
“Costumava
ler suas Notas de um Velho Safado na
L.A. Free Press e Open City.”
“Bem,
quem diria...”
Apertamos
as mãos. A luta foi cancelada.
Linda
e eu falamos com várias pessoas, não sei sobre o quê. Eu
continuava voltando ao bar a toda hora para pegar a minha vodka 7’s.
O barman me servia em copos altos. Eu também tinha bebido na
limusine no caminho para o show. A noite ficou mais fácil pra mim,
era só uma questão de beber bastante, rápido e com frequência.
Quando
o astro do rock chegou, eu já estava mais pra lá do que pra cá,
mas ainda estava aqui. Ele sentou e conversamos, mas não lembro
sobre o quê. Daí chegou a hora do black-out. Evidentemente
fomos embora. Só sei porque me contaram depois. A limusine nos levou
de volta pra casa. Quando cheguei em casa, tropecei nos degraus, caí
e bati a minha cabeça nos tijolos. Recém tínhamos colocado os
tijolos. Cortei a cabeça e machuquei a mão direita e as minhas
costas.
Descobri
a maior parte disso de manhã, quando levantei pra dar uma mijada.
Havia o espelho. A minha aparência era a dos velhos tempos das
brigas de bar. Cristo. Lavei um pouco do sangue, dei comida aos
nossos nove gatos e voltei pra cama. A Linda também não estava se
sentindo bem. Mas ela tinha visto seu show de rock.
Sabia
que não conseguiria escrever por três ou quatro dias e que
demoraria uns dois para voltar ao hipódromo.
De
volta para a música clássica. Fui homenageado e tudo mais. Era
legal que os astros do rock lessem o meu trabalho, mas sabia de
homens nas cadeias e nos hospícios que também liam. Não posso
controlar quem lê o meu trabalho. Esqueça.
É
bom sentar aqui esta noite, neste quartinho no segundo andar, ouvindo
o rádio, o velho corpo, a velha mente remendando. Aqui é o meu
lugar, assim. Assim. Assim.
Charles
Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os
marinheiros tomaram conta do navio
Nenhum comentário:
Postar um comentário