segunda-feira, 22 de julho de 2019

Zé Vitinho e dona Santa

O velhote Zé Vitinho era taciturno, mas bondoso. Cara fechada. Vivia pensando, lia, lia. A mulher dele, dona Santa, era santa mesmo. Quietinha, sempre de terço, a toda hora chamando: Zé Vitinho! Olha o beija-flor ali! Zé Vitinho levantava os olhos do livro e balbuciava: já vi, Santa, já vi. Um dia ele disse: Santa, li uns mil e duzentos livros e tô na mesma. Ela respondeu: ah, é? E isso é ruim, Zé Vitinho? Muito ruim mesmo, minha santa. Só disse isso e começou a dar uns saltos patéticos, bastante insólitos. Santa começou a rir. Ele continuou a saltar. Depois parou e começou a rir também. No dia seguinte sumiu. A vizinhança ficou apatetada. Sumiu como? E dona Santa contava a estorinha de novo! Já falei gente, ele disse que leu mil e duzentos livros e tava na mesma e depois pulou e depois riu, e de noite comeu bolinho de arroz e mandioca frita, depois dormiu e de manhã não tava mais lá. Lá onde? Na cama, gente. Alguns viram Zé Vitinho peladão subindo uma colina. Que colina, menino? Uai, aquela colina logo ali. E lá ia todo mundo na colina logo ali. Outro viu Zé Vitinho mijando atrás do ipê-amarelo. Que ipê-amarelo, Janjão? Credo, gente, aquele ipê-amarelo ali. E lá ia todo mundo pro ipê. Tinha gente que até urinava no ipê pra vê se aparecia Zé Vitinho. A filha da Maricota diz que viu Zé Vitinho apontando pra ela e gargalhando e dizendo assim: cê também vai ficá velha, Marisinha, e nojenta e pelada como eu, e assim sem dente! E Mansinha contou que nesse pedaço ele arrancou a dentadura da boca e jogou no bueiro. Que bueiro, Marisinha? Aquele bueiro ali, perto do toco negro. Que toco negro, menina? Uai, o toco que pegou fogo. Quando? Pois trasanteontem, gente! E todo mundo corria pra ver o toco negro. E nada do Zé Vitinho. E a dentadura, acharam? Era de madeira, dona Santa aclarava, ele dizia que era igualzinha a de George Washington, de madeira clarinha. De madeira, é? Pois nem parecia, né gente? É que ele nunca ria. Ah! Passaram-se muitos meses. Alguém viu um velhote bêbado sentado no penhasco. Que penhasco, Etelvina? Pois o único penhasco que existe aqui, aquele lá! E foram todos madrugadinha até o topo do penhasco. E lá estava Zé Vitinho. Bêbado. E um burro ao lado. Meu velho! Meu querido velho!, choramingou dona Santa. Vem pra casa, meu lindo! Eu não sou Zé Vitinho, não, Zé Vitinho é esse meu colega aqui, e apontava o burro, e ninguém vai me separar dele não, sai, sai, negada. E como ninguém saísse e dona Santa ficasse ali apatetada, Zé Vitinho montou no burro que escoiceou três vezes, e os dois escafederam-se penhasco abaixo, e a negada ficou de boca aberta vendo o burro correr como sangue puro e Zé Vitinho gritando: vamos ver Deus, Zé Vitinho, vamos juntos ver Deus! E sumiram nos longes, manhãzinha, quando o sol apontava.
Moral da estória: Pra baixo todo santo ajuda.
Hilda Hilst, in Jornal Correio Popular (1993)

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