quinta-feira, 18 de julho de 2019

Recriar o mundo sem o pecado original

O ar da estrada, a companhia, a simples distância em que ia ficando o Engenho começavam a afrouxar os nervos e músculos de Januário.
A mim me repugna a violência — disse Januário. — Levindo quase briga comigo porque venho aos engenhos como advogado, porque discuto em juízo, porque tento fazer ver aos senhores de engenho que estão extintos como classe. Os padres poderiam me ajudar prestigiando a Sociedade de Plantadores.
Vou falar com d. Anselmo — disse Nando.
Eu queria mais a sua adesão, padre Nando.
Conte comigo para tudo que puder ser feito imediatamente — disse Nando. — Porque eu estou a qualquer momento de partida para o Xingu, como você sabe.
Januário insistiu, brando:
Melhor ainda, como balão de ensaio. Se sua entrada ativa no movimento causar escândalo sua partida encerrará o caso. E outros padres virão.
Nando — disse Winifred —, Januário quer que você venha a uma reunião da Sociedade no Engenho do Meio, amanhã à noite. Você vem, não vem, Leslie?
Leslie assentiu com a cabeça.
Venha você também, Nando — disse Januário.
Pressa, pensou Nando, açodamento e violência. Era tranquila, imensa, funda a tarefa de recriar o mundo sem o pecado original. Não, não ia. Que tinha um homem de Deus a fazer nestas assembleias de raiva e bulha?
Venha — disse Januário. — Eu convenci o Levindo a vir também. Ele me disse que vem mas não oficialmente, isto é, como agitador trotskista. Por isso vem de noiva em punho.
Nando suspirou.
Está bem, Januário, prometo ir. Mas como espectador. — Você podia pelo menos dizer observador — disse Leslie.
Você não se comprometeria tanto assim. A Sociedade não tem fins tão drásticos e não propõe a adoção no Brasil do comunismo ateu.
Januário riu.
Mas cuidado, agora que a Sociedade já tem alguns grupos formados estão começando a nos chamar de Ligas Camponesas.
Nando falava diante do pequeno grupo de seminaristas, apontando os azulejos de Santa Teresa.
Não posso criticar em vocês — disse — o interesse maior pelo que há de dramático na vida da Fundadora e que encontramos nos azulejos do êxtase e nos da tentação. São os extremos da natureza de uma mulher que disse de si própria: en eso de deseos siempre los tuve grandes. Suas visões de Deus como do demônio chegaram a um ponto físico, vital. Se Teresa não fosse um gênio intelectualmente nem saberia comunicar o muito que viu e nem resistiria de corpo ao muito que padeceu. Mas Deus lhe deu a capacidade de expressão à altura da capacidade de visão.
Um dos seminaristas entoou:

Esta divina prisión
del amor con que yo vivo
ha hecho a Dios mi cautivo
y libre mi corazón;
y causa en mi tal pasión
ver a Dios mi prisionero,
que muero por que no muero.

Mas Teresa pouco falou em poesia — disse Nando. — Falou menos e menos bem do que San Juan. Na prosa é que Teresa iguala não importa que outro místico. Ela sentiu o pleno movimento pendular humano de Deus e Diabo.
Um sol manso de fim de tarde dourava o repuxo, a grama, a arcaria, os azulejos de Teresa de Jesus. Só agora, quase no fim da aula, viu Nando a figura esguia, de longa mantilha negra, que se ia movendo por trás das colunas, desenhando ou tomando notas, procurando não ser vista e não perturbar.
Nando continuou:
Teresa fala do Deus tão próximo dizendo: “Después que vi la gran hermosura del Señor, no veia a nadie que en su comparación me pareciese bien.” Mas quando afugenta o diabo é como se batesse em alguém com um cabo de vassoura: “Y una higa para todos los demónios que ellos me temerán a mi! Tengo ya más miedo a los que tan grande le tienen al demónio que a él mismo.” A vitória contra o diabo e contra seus confessores apavorados com o diabo, temerosos de que Teresa não soubesse distinguir entre o eterno Bem criador e a eterna Malícia destruidora, foi uma vitória completa.
Dois outros tinham visto Francisca apesar de verem mais mantilha do que Francisca, e Nando explicou:
É uma artista e tem permissão do Superior para trabalhar no claustro. Mas chegamos ao fim da exposição geral. Vamos da próxima vez estudar, guiando-nos pelos azulejos, o Livro das Fundações, combinado com Cartas de Santa Teresa de Jesus. Então a veremos como mulher de ação, com a força de vontade de um homem, um admirável senso de humor, uma incrível disposição para tratar os problemas mais corriqueiros e mais humildes, ao mesmo tempo que recebe as visões de Deus com a alegria de uma mulher apaixonada que vê chegar o esposo. O pedido que a santa fez em verso terminou como num acordo entre ela e Deus. Deus não a faria morrer ainda, já que muito esperava de Teresa no mundo. Mas franqueava a Teresa, em vida, os paços da eternidade. Corram a vista pelo Epistolário de Teresa e pelo Libro de las Fundaciones. Estudem por exemplo as cartas que escreveu Teresa em 1577 ao Rei Filipe II. Vejam o tom altivo de quem, habituada a conversar com Deus, escreve ao Rei.
Antonio Callado, in Quarup

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