Um
bloco marrom, compacto, saindo do verde. Manchas imprecisas dançam
diante de meus olhos fechados. Tenho de saber o que é. Cochilo no
ônibus e a mancha surge, com a mesma insistência com que tem
aparecido nestes últimos anos. Ela brota no fundo da memória, de
tempos em tempos.
Cada
vez que ela brota, mergulho na imobilidade. Não consigo mexer os
braços, mãos e pernas ficam adormecidas. Por pouco tempo. Sensação
angustiante, porque a única coisa que está em meu pensamento é a
mancha, movendo-se lenta. Eu, paralisado, semimorto. Porém
consciente.
Volto
para casa. O barbeiro está lotado, a esta hora a temperatura baixou
um pouco. As pessoas suam e conversam. Falam devagar, ninguém
excitado para não gastar energia. Conheço alguns, são vizinhos.
Outros, completamente desconhecidos. Aliás, desconhecidos em maior
número.
Não
há banho. Meu sobrinho ficou de aparecer. Adelaide reclama que ele
não telefonou nem mandou recado. “Mamãe vai nos emprestar duas
fichas.” Abri a televisão, desliguei. Fiquei observando a mão
furada, senti vontade de sair. Ir para onde? Se ainda houvesse o
velho jardim público.
Adelaide
ligou outra vez a televisão. A novela começava. Ela não disse nada
até o fim, é um dos últimos capítulos. Segui a história
desinteressado. Depois ela desligou o som e me olhou
interrogativamente. Incrível a quantidade de olhares que ela possui,
devia ser atriz. Não fosse tão contida, amarrada.
– Fiz
promessa a Nossa Senhora Aparecida. Se ela curar esse buraco, vamos
ao santuário ouvir duas missas. E dou sua mão em cera para a santa.
– Aposto
que foram essas vizinhas que te deram a ideia.
– Falei
com mamãe. Ela achou que eu devia fazer a promessa. Não custa nada!
– Não
vou cumprir promessa nenhuma. Vê se me deixa com o furo.
Começou
a chorar, foi para a cozinha. Não me importo que chore. Não tenho
nada com isso, não mais. Olho com surpresa os móveis, cortinas
desbotadas, a pilha de jornais, as revistas de moldes, a prateleira
de bibelôs, quadros de santo, toalhinhas de renda, cinzeiro e
porcelana.
Sinto-me
em outra casa. Na de um amigo, conhecido. Parece que nunca olhei para
essas coisas. Tão feias, arrumadinhas, inúteis. Nunca usei essa
xícara com iniciais azuis. Nem os pratos chineses que só servem
para dar trabalho à faxineira. E essas flores que ela compra todas
as semanas.
As
mesmas flores factícias, sempre. Feitas de plástico.
Maravilhosamente benfeitas, folhas e pétalas finas e suaves ao
toque. Um dia (faz quantos anos?) fiquei mais de hora olhando as
pétalas de uma rosa branca. Acho que foi a última vez que vi flor
verdadeira, não factícia.
A
rosa estava no canto da parede, no pequeno altar ao Sagrado Coração.
A cada dois dias, Adelaide colocava uma nova, trazida do jardinzinho
da frente. A rosa se tornava cinza de um dia para o outro. Recoberta
por uma camada de fuligem que aderia ao aveludado da pétala. E não
saía.
Quando
esmaguei a pétala, fiquei com a mancha preta na mão. Como se fosse
graxa. E aquela graxa tinha grudado nos dedos, me deu nojo. Estava me
lembrando disso enquanto dava um puxão no prego que sustentava uma
bandeja de charão. Está aqui desde que nos casamos.
Dez
dias depois do casamento Adelaide tinha acabado de arrumar a casa. E
tudo permaneceu. Estagnado. O prego frouxo, dei pequenos toques na
ponta da bandeja vermelha com desenhos chineses. Ela acabou caindo,
bateu de ponta, partiu-se, cacos voaram. “Venha jantar”, Adelaide
chamou.
Ela
não quis sentar-se à mesa, ficou com o prato no colo, a um canto.
Gato, parece um gato. Eram curiosos os gatos. Cachorro, eu odiava.
Nunca fui com esse bicho. Ojeriza, não sei por quê, nunca me fez
nada. Talvez eu não goste de quem vive lambendo os outros, correndo
atrás, servilmente.
Há
muitos anos nos deitamos quinze para as onze, depois de termos ouvido
o jornal na Rádio Geral. Adelaide fica com o seu crochê, não se
incomoda com as notícias. “Vamos dormir?”, propus. Ela jogou
para mim outro olhar, desta vez desorientado. Como? Da mesa para a
cama, nem ouvir o rádio?
Escovamos
os dentes, ela passou Antisardina no rosto. Sua pele é bonita. Desde
que nos casamos, ao passar pelo corredor, entre o quarto e o
banheiro, deixo que ela vá à frente. Coloco a mão em seus ombros e
assim entramos no quarto. Nesta noite, pela segunda vez, ela teve um
gesto forte de repulsa.
Instintivo,
inconsciente. Quando sentiu a mão no ombro (é automático, mesmo),
ela se encolheu inteira. Parei, tirei a mão, rápido, enquanto ela
continuava caminhando sem olhar para trás, certa de que eu a
observava. Talvez querendo saber como era o meu olhar. Surpreso,
indiferente?
Tive
pena de Adelaide. De repente, ela se via só no mundo. Saltando de um
avião sem paraquedas. Penetrava num círculo de insegurança. Não
me encontrava. Ou melhor, não encontrava o homem com quem convivia,
de quem dependia. Adelaide não compreende minhas atitudes e não
tenho como explicar.
Não
acendemos a luz do quarto. Nos trocamos na penumbra. As roupas
estavam nos mesmos lugares. O pijama, a camisola, a meia (apesar do
mormaço contínuo, ela tem o pé muito frio). Se um dia ficarmos
cegos, ainda assim vamos andar pela casa com naturalidade. Conhecemos
cada milímetro dela.
As
roupas passadas, sobre a cômoda. Cada noite, antes de nos deitarmos,
ela coloca tudo ordenadamente nas gavetas. E, por instantes, o quarto
é invadido pelo cheiro suave de sol, sabão e naftalina, enquanto
das velhas gavetas ainda vem o aroma longamente conservado do cedro.
Fingimos
dormir. Silenciosos, eu percebendo que ela tem vontade de falar.
Tenta, e não diz nada. Se movimenta, inquieta. Até ontem, Adelaide
conhecia tudo de mim, podia prever o que eu diria, os gestos, meus
horários. Agora, sente vergonha de estarmos na mesma cama. Sou um
desconhecido.
Sinto
o rosto ardendo, a pele quente, meu coração bate apressado. Gosto
dessa mulher, não queria que tais coisas acontecessem com ela. Em
outros tempos ela teria perguntado, feito uma brincadeira, rido. No
entanto, mostra-se com medo, esquiva, se encolhe no seu canto, quase
a cair da cama.
Ouvimos,
os dois, e nos sentamos de um salto. Andavam pelo terraço. Claro,
andavam, com passos firmes. E quem estava lá não procurava
disfarçar, caminhava normalmente, para lá e para cá. Não era
bicho, que os animais têm o andar macio. Além disso, que ilusão a
minha pensar em bichos.
– Ouviu?
– Claro,
um barulho desses!
– O
que a gente faz?
– Vamos
ver.
– Ver?
Está louco? E se for um ladrão armado?
– Acende
a luz, ele se assusta.
– Melhor
ligar para o Posto Civiltar.
– É?
E se eles não encontram nada, levamos uma multa.
– Que
horas são?
– Como
posso ver no escuro?
– Se
for mais de duas, não podemos acender a luz.
– É
emergência.
– Como
provar depois?
Conversamos
baixinho, enquanto o barulho diminuía. De repente, saltei da cama.
Afinal, qual era? Coisa mais ridícula, minha casa ameaçada, eu nem
podia acender a luz, nem chamar alguém para me proteger. Gritei. Com
toda a força. Tão inesperadamente que Adelaide se assustou.
Acendi
a luz, olhei o relógio. Parado. Pela segunda vez em quantos anos?
Uns vinte. Adelaide tinha deixado o emprego quando ele quebrou pela
primeira vez. Fomos comemorar numa pizzaria, nos esquecemos do
conserto. Daquela vez fiquei apreensivo, deixei o rádio ligado para
não perder a hora.
Adelaide
colocou o penhoar desbotado. Diabo de mania, um calor destes, quem
vai prestar atenção em seu pijama curto? As vizinhas andam com as
pernas de fora, de shorts, e não se pode dizer que são meninas. Que
não há. Neste prédio as mulheres todas beiram os cinquenta ou
sessenta.
Coloquei
as mãos em seus ombros, ela se encostou em mim. O corredor cheio de
gente, rostos intrigados. Alguns ainda abriam as portas
cautelosamente, observavam o movimento, se juntavam, inquietos. Todos
ouviram, o barulho no terraço foi grande, só podia ser gente.
Fazendo o quê?
– Pegaram
um.
– Pegaram
nada. O careca fugiu.
– Quantos
eram?
– Sei
lá. Acho que uns dez.
– Muito
mais. Ouvi o barulho lá do sétimo.
– Alguém
subiu?
– A
comissão do prédio.
– O
que estavam fazendo?
– Chamaram
o Posto?
– Estão
ocupados, atendendo outros casos. Há falta de viaturas.
– Não
estou gostando, tem estranho demais neste Distrito. O que está
acontecendo com o controle de fichas?
– Que
controle, que nada. Alguém dá satisfação?
– Corram,
a comissão está na casa de dona Alcinda.
O
apartamento de dona Alcinda era dois andares abaixo. Escadas
superlotadas, zum-zum-zum nos corredores, parece que o prédio
inteiro levantou. Não dava para entrar, as informações
desencontradas circulavam de boca em boca, nunca se sabia se o que
chegava até a gente era o concreto.
– Viu
o que estavam fazendo?
– O
que estavam fazendo?
Havia
quem simplesmente não entendia o que se passava, rebatia pergunta
com pergunta, ninguém chegava a um acordo, todos excitados. Um
passava ao outro um pedaço do fato, no entanto os fatos juntos não
representavam nenhuma situação completa. De modo que o nervosismo
foi aumentando.
– Acharam
uma mangueira.
– De
quem é a mangueira?
– Estavam
dentro da caixa d’água?
– Na
caixa? Mas a caixa fica no terraço e o terraço é lacrado.
– Arrombaram
o lacre.
– Que
horror! Como explicar aos Civiltares?
– Vamos
prestar queixa.
– Quem
vai acreditar que não fomos nós?
– A
comissão do prédio vai fazer o registro de perdas e danos. Levaram
muita água.
– Levaram
água?
– Quem
levou água?
– Tem
uma mangueira estendida na lateral do prédio, por fora.
– Foram
os carecas? Estão rondando muito por aqui.
– Alguém
viu um uniforme do Novo Exército.
– Levaram
muita água?
– Mais
de meia caixa. Sorte nossa que a mangueira estourou, fez um barulhão,
eles correram.
– Domingo
roubaram no prédio da esquina.
– Só
tem uma solução, contratar atiradores. Matar ladrão de água não
é crime. O duro é provar que estavam roubando água.
– É
que muitos prédios dão o golpe. Arrombam as caixas, tiram água,
chamam os Civiltares.
– Antes
de investigar o roubo, agora, investigam os moradores. Depois de
provada nossa inocência, partem para a segunda etapa. Mas, aí, já
correu tanto tempo.
– Nem
vale a pena fazer o registro, só dá amolação. Amanhã o edifício
inteiro vai ter de correr atrás do Atestado de Antecedentes.
– Amanhã
a comissão mede o reservatório, faz a divisão de cotas.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
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