sábado, 13 de julho de 2019

No escuro do quarto, a ausência do tique-taque. Então ouviram. Andavam sobre o terraço. Não eram animais, pois animais não existem

Um bloco marrom, compacto, saindo do verde. Manchas imprecisas dançam diante de meus olhos fechados. Tenho de saber o que é. Cochilo no ônibus e a mancha surge, com a mesma insistência com que tem aparecido nestes últimos anos. Ela brota no fundo da memória, de tempos em tempos.
Cada vez que ela brota, mergulho na imobilidade. Não consigo mexer os braços, mãos e pernas ficam adormecidas. Por pouco tempo. Sensação angustiante, porque a única coisa que está em meu pensamento é a mancha, movendo-se lenta. Eu, paralisado, semimorto. Porém consciente.
Volto para casa. O barbeiro está lotado, a esta hora a temperatura baixou um pouco. As pessoas suam e conversam. Falam devagar, ninguém excitado para não gastar energia. Conheço alguns, são vizinhos. Outros, completamente desconhecidos. Aliás, desconhecidos em maior número.
Não há banho. Meu sobrinho ficou de aparecer. Adelaide reclama que ele não telefonou nem mandou recado. “Mamãe vai nos emprestar duas fichas.” Abri a televisão, desliguei. Fiquei observando a mão furada, senti vontade de sair. Ir para onde? Se ainda houvesse o velho jardim público.
Adelaide ligou outra vez a televisão. A novela começava. Ela não disse nada até o fim, é um dos últimos capítulos. Segui a história desinteressado. Depois ela desligou o som e me olhou interrogativamente. Incrível a quantidade de olhares que ela possui, devia ser atriz. Não fosse tão contida, amarrada.
Fiz promessa a Nossa Senhora Aparecida. Se ela curar esse buraco, vamos ao santuário ouvir duas missas. E dou sua mão em cera para a santa.
Aposto que foram essas vizinhas que te deram a ideia.
Falei com mamãe. Ela achou que eu devia fazer a promessa. Não custa nada!
Não vou cumprir promessa nenhuma. Vê se me deixa com o furo.
Começou a chorar, foi para a cozinha. Não me importo que chore. Não tenho nada com isso, não mais. Olho com surpresa os móveis, cortinas desbotadas, a pilha de jornais, as revistas de moldes, a prateleira de bibelôs, quadros de santo, toalhinhas de renda, cinzeiro e porcelana.
Sinto-me em outra casa. Na de um amigo, conhecido. Parece que nunca olhei para essas coisas. Tão feias, arrumadinhas, inúteis. Nunca usei essa xícara com iniciais azuis. Nem os pratos chineses que só servem para dar trabalho à faxineira. E essas flores que ela compra todas as semanas.
As mesmas flores factícias, sempre. Feitas de plástico. Maravilhosamente benfeitas, folhas e pétalas finas e suaves ao toque. Um dia (faz quantos anos?) fiquei mais de hora olhando as pétalas de uma rosa branca. Acho que foi a última vez que vi flor verdadeira, não factícia.
A rosa estava no canto da parede, no pequeno altar ao Sagrado Coração. A cada dois dias, Adelaide colocava uma nova, trazida do jardinzinho da frente. A rosa se tornava cinza de um dia para o outro. Recoberta por uma camada de fuligem que aderia ao aveludado da pétala. E não saía.
Quando esmaguei a pétala, fiquei com a mancha preta na mão. Como se fosse graxa. E aquela graxa tinha grudado nos dedos, me deu nojo. Estava me lembrando disso enquanto dava um puxão no prego que sustentava uma bandeja de charão. Está aqui desde que nos casamos.
Dez dias depois do casamento Adelaide tinha acabado de arrumar a casa. E tudo permaneceu. Estagnado. O prego frouxo, dei pequenos toques na ponta da bandeja vermelha com desenhos chineses. Ela acabou caindo, bateu de ponta, partiu-se, cacos voaram. “Venha jantar”, Adelaide chamou.
Ela não quis sentar-se à mesa, ficou com o prato no colo, a um canto. Gato, parece um gato. Eram curiosos os gatos. Cachorro, eu odiava. Nunca fui com esse bicho. Ojeriza, não sei por quê, nunca me fez nada. Talvez eu não goste de quem vive lambendo os outros, correndo atrás, servilmente.
Há muitos anos nos deitamos quinze para as onze, depois de termos ouvido o jornal na Rádio Geral. Adelaide fica com o seu crochê, não se incomoda com as notícias. “Vamos dormir?”, propus. Ela jogou para mim outro olhar, desta vez desorientado. Como? Da mesa para a cama, nem ouvir o rádio?
Escovamos os dentes, ela passou Antisardina no rosto. Sua pele é bonita. Desde que nos casamos, ao passar pelo corredor, entre o quarto e o banheiro, deixo que ela vá à frente. Coloco a mão em seus ombros e assim entramos no quarto. Nesta noite, pela segunda vez, ela teve um gesto forte de repulsa.
Instintivo, inconsciente. Quando sentiu a mão no ombro (é automático, mesmo), ela se encolheu inteira. Parei, tirei a mão, rápido, enquanto ela continuava caminhando sem olhar para trás, certa de que eu a observava. Talvez querendo saber como era o meu olhar. Surpreso, indiferente?
Tive pena de Adelaide. De repente, ela se via só no mundo. Saltando de um avião sem paraquedas. Penetrava num círculo de insegurança. Não me encontrava. Ou melhor, não encontrava o homem com quem convivia, de quem dependia. Adelaide não compreende minhas atitudes e não tenho como explicar.
Não acendemos a luz do quarto. Nos trocamos na penumbra. As roupas estavam nos mesmos lugares. O pijama, a camisola, a meia (apesar do mormaço contínuo, ela tem o pé muito frio). Se um dia ficarmos cegos, ainda assim vamos andar pela casa com naturalidade. Conhecemos cada milímetro dela.
As roupas passadas, sobre a cômoda. Cada noite, antes de nos deitarmos, ela coloca tudo ordenadamente nas gavetas. E, por instantes, o quarto é invadido pelo cheiro suave de sol, sabão e naftalina, enquanto das velhas gavetas ainda vem o aroma longamente conservado do cedro.
Fingimos dormir. Silenciosos, eu percebendo que ela tem vontade de falar. Tenta, e não diz nada. Se movimenta, inquieta. Até ontem, Adelaide conhecia tudo de mim, podia prever o que eu diria, os gestos, meus horários. Agora, sente vergonha de estarmos na mesma cama. Sou um desconhecido.
Sinto o rosto ardendo, a pele quente, meu coração bate apressado. Gosto dessa mulher, não queria que tais coisas acontecessem com ela. Em outros tempos ela teria perguntado, feito uma brincadeira, rido. No entanto, mostra-se com medo, esquiva, se encolhe no seu canto, quase a cair da cama.
Ouvimos, os dois, e nos sentamos de um salto. Andavam pelo terraço. Claro, andavam, com passos firmes. E quem estava lá não procurava disfarçar, caminhava normalmente, para lá e para cá. Não era bicho, que os animais têm o andar macio. Além disso, que ilusão a minha pensar em bichos.
Ouviu?
Claro, um barulho desses!
O que a gente faz?
Vamos ver.
Ver? Está louco? E se for um ladrão armado?
Acende a luz, ele se assusta.
Melhor ligar para o Posto Civiltar.
É? E se eles não encontram nada, levamos uma multa.
Que horas são?
Como posso ver no escuro?
Se for mais de duas, não podemos acender a luz.
É emergência.
Como provar depois?
Conversamos baixinho, enquanto o barulho diminuía. De repente, saltei da cama. Afinal, qual era? Coisa mais ridícula, minha casa ameaçada, eu nem podia acender a luz, nem chamar alguém para me proteger. Gritei. Com toda a força. Tão inesperadamente que Adelaide se assustou.
Acendi a luz, olhei o relógio. Parado. Pela segunda vez em quantos anos? Uns vinte. Adelaide tinha deixado o emprego quando ele quebrou pela primeira vez. Fomos comemorar numa pizzaria, nos esquecemos do conserto. Daquela vez fiquei apreensivo, deixei o rádio ligado para não perder a hora.
Adelaide colocou o penhoar desbotado. Diabo de mania, um calor destes, quem vai prestar atenção em seu pijama curto? As vizinhas andam com as pernas de fora, de shorts, e não se pode dizer que são meninas. Que não há. Neste prédio as mulheres todas beiram os cinquenta ou sessenta.
Coloquei as mãos em seus ombros, ela se encostou em mim. O corredor cheio de gente, rostos intrigados. Alguns ainda abriam as portas cautelosamente, observavam o movimento, se juntavam, inquietos. Todos ouviram, o barulho no terraço foi grande, só podia ser gente. Fazendo o quê?
Pegaram um.
Pegaram nada. O careca fugiu.
Quantos eram?
Sei lá. Acho que uns dez.
Muito mais. Ouvi o barulho lá do sétimo.
Alguém subiu?
A comissão do prédio.
O que estavam fazendo?
Chamaram o Posto?
Estão ocupados, atendendo outros casos. Há falta de viaturas.
Não estou gostando, tem estranho demais neste Distrito. O que está acontecendo com o controle de fichas?
Que controle, que nada. Alguém dá satisfação?
Corram, a comissão está na casa de dona Alcinda.
O apartamento de dona Alcinda era dois andares abaixo. Escadas superlotadas, zum-zum-zum nos corredores, parece que o prédio inteiro levantou. Não dava para entrar, as informações desencontradas circulavam de boca em boca, nunca se sabia se o que chegava até a gente era o concreto.
Viu o que estavam fazendo?
O que estavam fazendo?
Havia quem simplesmente não entendia o que se passava, rebatia pergunta com pergunta, ninguém chegava a um acordo, todos excitados. Um passava ao outro um pedaço do fato, no entanto os fatos juntos não representavam nenhuma situação completa. De modo que o nervosismo foi aumentando.
Acharam uma mangueira.
De quem é a mangueira?
Estavam dentro da caixa d’água?
Na caixa? Mas a caixa fica no terraço e o terraço é lacrado.
Arrombaram o lacre.
Que horror! Como explicar aos Civiltares?
Vamos prestar queixa.
Quem vai acreditar que não fomos nós?
A comissão do prédio vai fazer o registro de perdas e danos. Levaram muita água.
Levaram água?
Quem levou água?
Tem uma mangueira estendida na lateral do prédio, por fora.
Foram os carecas? Estão rondando muito por aqui.
Alguém viu um uniforme do Novo Exército.
Levaram muita água?
Mais de meia caixa. Sorte nossa que a mangueira estourou, fez um barulhão, eles correram.
Domingo roubaram no prédio da esquina.
Só tem uma solução, contratar atiradores. Matar ladrão de água não é crime. O duro é provar que estavam roubando água.
É que muitos prédios dão o golpe. Arrombam as caixas, tiram água, chamam os Civiltares.
Antes de investigar o roubo, agora, investigam os moradores. Depois de provada nossa inocência, partem para a segunda etapa. Mas, aí, já correu tanto tempo.
Nem vale a pena fazer o registro, só dá amolação. Amanhã o edifício inteiro vai ter de correr atrás do Atestado de Antecedentes.
Amanhã a comissão mede o reservatório, faz a divisão de cotas.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

Nenhum comentário:

Postar um comentário