quinta-feira, 11 de julho de 2019

Era um dia frio – capítulo 1 (trecho final)

Como de hábito, a face de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Aqui e ali houve assovios entre o público. A mulherzinha de cabelo cor de areia emitiu um uivo misto de medo e repugnância. Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos ninguém se lembrava) fora uma das figuras de proa do Partido, quase no mesmo plano que o próprio Grande Irmão, tendo depois se dedicado a atividades contrarevolucionárias, sendo por isso condenado à morte, da qual escapara, desaparecendo misteriosamente. O programa dos Dois Minutos de Ódio variava de dia a dia, sem que porém Goldstein deixasse de ser o personagem central cotidiano. Era o traidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido. Todos os subsequentes crimes contra o Partido, todas as traições, atos de sabotagem, heresias, desvios, provinham diretamente dos seus ensinamentos. Em alguma parte do mundo, ele continuava vivo e tramando suas conspirações: talvez no além-mar, sob proteção dos seus patrões estrangeiros; talvez até mesmo - de vez em quando corria o boato - em algum esconderijo na própria Oceania.
Winston sentiu contrair-se o diafragma. Nunca podia ver a face de Goldstein sem uma dolorosa mistura de emoções. Era um rosto judaico, magro, com um grande halo de cabelo branco esgrouviado e um pequeno cavanhaque - um rosto arguto e no entanto, de certo modo, intrinsecamente desprezível, com um ar de tolice senil no nariz comprido e fino no qual se equilibravam os óculos. Parecia a cara duma ovelha, e a voz também recordava um balido. Goldstein lançava o costumeiro ataque peçonhento às doutrinas do Partido - um ataque tão exagerado e perverso que uma criança poderia refutá-lo, e no entanto suficientemente plausível para encher o cidadão de alarme, de receio que outras pessoas menos equilibradas o pudessem aceitar. Insultava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdade de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histericamente que a revolução fora traída - e tudo numa linguagem rápida, polissilábica, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido, e até continha palavras em Novilíngua: maior número dessas palavras, com efeito, do que qualquer membro do Partido usaria na vida diária. E todo o tempo, para que não persistissem dúvidas quanto à realidade oculta pela lengalenga especiosa de Goldstein, marchavam por trás de sua cabeça, na teletela, infindas colunas do exército eurasiano - fileiras após fileiras de homens sólidos com rostos asiáticos, sem expressão, que vinham até a superfície da placa e sumiam, para ser seguidos por outros exatamente idênticos. O ritmo cavo e monótono das botas dos soldados formava uma cortina sonora para os balidos de Goldstein.
Antes do ódio se haver desenrolado por trinta segundos, metade dos presentes soltava incontroláveis exclamações de fúria. Era demais, suportar a vista daquela cara de ovelha satisfeita e do poderio terrífico do exército eurasiano, mostrado na tela: além disso, ver ou mesmo pensar em Goldstein produzia automaticamente medo e raiva. Era objeto de ódio mais constante que a Eurásia ou a Lestásia pois quando a Oceania estava em guerra com uma dessas potências, em geral estava em paz com a outra. O estranho, todavia, é que embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todo mundo, embora todos os dias, e milhares de vezes por dia, nas tribunas, teletelas, jornais, livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, apresentadas aos olhos de todos como lixo à toa... e apesar de tudo isso, sua influência nunca parecia diminuir. Havia sempre novos bocós esperando para ser seduzidos. Não se passava dia sem que espiões e sabotadores, obedientes a ordens dele, não fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento. Era comandante de um vasto exército de sombras, uma rede subterrânea de conspiradores dedicados à derrocada do Estado. Supunha-se que se chamava a Fraternidade. Murmurava-se também a respeito de um livro terrível, um compêndio de todas as heresias, escrito por Goldstein, e que circulava clandestinamente aqui e ali. Era um livro sem título. Referiam-se a ele, simplesmente, por o livro. Mas só se sabia dessas coisas através de vagos boatos. Nem a Fraternidade nem o livro eram assuntos que um militante comum do Partido mencionasse.
No segundo minuto o ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras, e berravam a plenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz alucinante que saía da tela. A mulherzinha do cabelo de areia ficara toda rosa, e abria e fechava a boca como peixe jogado à terra. Até o rosto másculo de O'Brien estava corado. Estava sentado muito teso na sua cadeira, o peito largo se alteando e agitando como se resistisse ao embate duma vaga. A morena atrás de Winston pusera-se a berrar “Porco! Porco! Porco!” De repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e atirou-o à tela. O livro atingiu o nariz de Goldstein e ricochetou; a voz continuou, inexorável. Num momento de lucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a travessa da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vingança, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico. Assim, havia momentos em que o ódio de Winston não se dirigia contra Goldstein mas, ao invés, contra o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento; e nesses momentos o seu coração se aproximava do solitário e ridicularizado herege da tela, o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. No entanto, no instante seguinte se irmanava com os circunstantes, e tudo quanto se dizia de Goldstein lhe parecia verdadeiro.
Nesses momentos, o seu ódio secreto pelo Grande Irmão se transformava em adoração, e o Grande Irmão parecia crescer, protetor destemido e invencível, firme como uma rocha contra as hordas da Ásia, e Goldstein, apesar do seu isolamento, sua fraqueza e da dúvida que cercava a sua própria existência, lhe parecia um hipnotizador sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização pelo mero poder da voz. Nesses momentos era até possível dirigir o ódio neste ou naquele rumo, por ato voluntário. De repente, por uma espécie desse esforço violento com que, num pesadelo, se arranca a cabeça do travesseiro, Winston conseguiu transferir para a moça de cabelo escuro, sentada atrás dele, o ódio que antes dedicava à figura da tela. Belas e vívidas alucinações lhe atravessaram o cérebro. Haveria de matá-la a golpes de um cajado de borracha. Amarrá-la-ia nua a um poste e a crivaria de flechas como São Sebastião. Possui-la-ia e a degolaria no momento do gozo. Além disso, percebeu mais claro que antes porque a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e assexuada, porque desejava ir para a cama com ela, e porque nunca o faria, porque na cinturinha fina e convidativa, que parecia pedir que a segurassem com o braço, só havia a odiosa faixa escarlate, o agressivo símbolo de castidade.
O ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein transformara-se de fato num balido de ovelha, e por um instante o rosto se transformou numa cara de carneiro. Depois a cara de carneiro se fundiu na de um soldado eurasiano que parecia avançar, enorme e terrível, com a metralhadora de mão rugindo, parecendo saltar da superfície da tela, de modo tão real que alguns da primeira fileira se inclinaram para trás. No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Grande Irmão, de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo das palavras que se pronunciam no vivo do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo fato de serem ditas. Então o rosto do Grande Irmão sumiu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito:
GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA
Mas o rosto do Grande Irmão pareceu persistir por vários segundos na tela, como se o seu impacto nas pupilas fosse forte demais para se esmaecer tão rápido. A mulherzinha do cabelo cor de areia atirara-se sobre o espaldar da cadeira que tinha à frente. Com um murmúrio trêmulo que parecia dizer “Meu Salvador”, estendeu os braços para a tela. Depois ocultou a face nas mãos. Era claro que orava.
Nesse momento, todo o grupo se pôs a entoar um canto ritmado "G.I.!... G.I.!... G.I.!" repetido inúmeras vezes, com uma longa pausa entre o G e o I - um som cavo e surdo, curiosamente selvagem, no fundo do qual se parecia ouvir batidas de pés nus e o rufo dos atabaques. Durou meio minuto talvez. Era um estribilho que se ouvia com frequência nos momentos de emoção dominadora. Era em parte um hino à sapiência e majestade do Grande Irmão porém, mais que isso, era auto-hipnotismo, o afogar deliberado da consciência por meio do barulho rítmico. As entranhas de Winston pareceram esfriar. Durante os Dois Minutos de ódio, não era possível deixar de participar do delírio geral, mas aquele cântico sub-humano “G.I.! G.I.!” sempre o enchia de pavor. Naturalmente, cantava com os outros: seria impossível proceder de outra forma. Dominar os sentimentos, controlar as feições, fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva. Havia porém um lapso de dois segundos em que a expressão de seus olhos poderia traí-lo. E foi exatamente nesse lapso que a coisa sucedera - se é que de fato sucedera. Momentaneamente, seu olhar encontrara o de O'Brien, que se erguera. Tirara os óculos e ia colocá-los no lugar, com um gesto característico. Mas houve uma fração de segundo em que os olhares se encontraram e, enquanto durou, Winston viu - sim, viu! - que O'Brien estava pensando o mesmo que ele. Completara-se uma inequívoca comunicação. Fora como se os dois espíritos se abrissem e os pensamentos de um passassem ao outro, pelos olhos. “Estou contigo,” pareceu dizer-lhe O'Brien. “Sei exatamente o que sentes. Sei tudo de teu desprezo, teu ódio, teu nojo. Mas não te aflijas, estou a teu lado!” E daí sumira-se a faísca de inteligência e a face de O'Brien se tornara inescrutável como a de todos.
Fora tudo, e ele já nem tinha a certeza de que de fato acontecera. Tais incidentes jamais tinham sequela. Tudo que faziam era manter viva, dentro dele, a fé, ou a esperança, de que houvesse outros inimigos do Partido. Afinal de contas, talvez fossem verdadeiros os boatos de vastas conspirações subterrâneas - quem sabe existisse mesmo a Fraternidade! Era impossível, não obstante as infindas prisões, confissões e execuções, ter a certeza de que a Fraternidade não passava de invencionice. Alguns dias ele acreditava, outros não. Não havia provas, apenas visões fugidias que podiam significar algo ou nada: trechos de conversa entreouvida, rabiscos apagados nas paredes das privadas - e uma vez, até, no encontro de dois desconhecidos, um pequeno movimento de mãos que talvez fosse um sinal identificador. Era tudo palpite: provavelmente imaginara a coisa. Voltou ao cubículo sem tornar a olhar para O'Brien. Mal lhe passara pela cabeça a ideia de aprofundar o contato momentâneo. Seria inconcebivelmente perigoso, mesmo que soubesse como agir. Durante um segundo, dois, haviam trocado um olhar equívoco, e era o fim da história. Mas até aquilo era um acontecimento memorável, na solidão amuralhada em que se era obrigado a viver.
Winston levantou-se e acomodou-se melhor na cadeira. Soltou um arroto. Era o gim que lhe subia do estômago. Seus olhos tornaram a focar a página. Descobriu que estivera escrevendo, num gesto automático, ao mesmo tempo que a memória divagava. E não era mais a letra desajeitada e miúda de antes. A pena correra voluptuosamente sobre o papel macio, escrevendo em grandes letras de imprensa:
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
muitíssimas vezes, enchendo meia página.
Não pôde deixar de sentir um laivo de pânico. Era absurdo, pois escrever aquelas palavras não era mais perigoso que o ato inicial de abrir o diário, mas, por um momento se sentiu tentado a rasgar as páginas usadas e abandonar por completo a empresa.
Não o fez, contudo, porque sabia ser inútil. Quer escrevesse ABAIXO O GRANDE IRMÃO ou não, não fazia diferença. Quer continuasse o diário, quer parasse, não fazia diferença. A Polícia do Pensamento o apanharia do mesmo modo. Cometera - e teria cometido, nem que não levasse a pena ao papel - o crime essencial, que em si continha todos os outros. Crimidéia, chamava-se. O crimidéia não era coisa que pudesse ocultar. Podia-se escapar com êxito algum tempo, anos até, porém mais cedo ou mais tarde pegavam o criminoso.
E era sempre à noite - as prisões eram sempre à noite.
O súbito arranco ao sono, a mão rude sacudindo o ombro, as luzes ferindo os olhos, o círculo de caras implacáveis em torno da cama. Na vasta maioria dos casos não havia julgamento, nem notícia da prisão. As pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a noite. O nome do cidadão era removido dos registros, suprimida toda menção dele, negada sua existência anterior, e depois esquecido. Era-se abolido, aniquilado; vaporizado era o termo corriqueiro.
Winston foi dominado por breve ataque de histeria. Pôs-se a escrever em garranchos apressados:
me darão um tiro que me importa me darão um tiro na nuca não me importa abaixo o grande irmão eles sempre dão tiro na nuca que me importa abaixo o grande irmão
Ergueu-se um pouco na cadeira, ligeiramente envergonhado de si próprio, e largou a caneta. Dali a um segundo levou um susto enorme. Batiam à porta.
Já?! Deixou-se ficar, quieto como um camundongo, na esperança vã de que a pessoa se fosse sem insistir. Mas não, a batida repetiu-se. Seria pior atrasar-se. Com o coração batendo como um tambor - mas com a face provavelmente sem expressão, graças ao velho hábito - ele se levantou e encaminhou-se para a porta a passos tardos.
George Orwell, in 1984

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