O
ônibus chegou, a coceira voltou. Cruzei a borboleta, não havia
lugares vagos. Normal, a essa hora. Cumprimentei pessoas que vejo
aqui todos os dias, à mesma hora. Os novos são raros. Somos parte
do S-7.58, nos permitem este, nenhum outro. É o que dizem as fichas
de tráfego.
A
ficha indica onde posso andar, os caminhos a percorrer, bairros
autorizados, por que lado de calçada circular, condução a tomar.
Assim, somos sempre os mesmos dentro do S-7.58. Nos conhecemos todos,
mas não nos falamos, raramente nos cumprimentamos. Viajamos em
silêncio.
Sou
exceção, grito meu bom-dia, os rostos se viram aflitos, perplexos.
Depois se voltam para a paisagem, as calçadas congestionadas. Mais
um louco, pensam. Todos têm certeza, serei apanhado ao descer. No
dia seguinte se surpreendem, sem demonstrar, quando apareço,
cumprimentando.
Três
pontos antes do final (deve ser dez e vinte) senti uma comichão
insuportável. Estava comprimido. Não podia olhar, nem levantar a
mão. Segurava a maleta com a esquerda, com a direita me apoiava ao
varão. Empurrado para a saída, me despedi. Claro que não
responderam.
Acabei
de descer, ouvi os estampidos. Secos, ocos. Tão conhecidos.
Joguei-me rápido ao chão, conforme severas instruções. Num décimo
de segundo, todos em volta estendidos. Vivemos condicionados, nossos
reflexos aguçados. Como aqueles ratos que vão comer ao ouvir a
campainha.
Quantas
vezes por dia me atiro ao chão nesta cidade. Se alguém filmasse
durante algumas horas, sem registrar o som, veria uma daquelas velhas
comédias de Harold Loyd, o Gordo e o Magro, Mack Sennet. Deita,
levanta, deita, levanta. E os rostos? Todo mundo apavorado, tenso.
As
pessoas disputam centímetros de calçada. Batem cabeças, se beijam,
ficam rosto a rosto, cheiram o pó, se levantam imundas, xingam,
protestam. Teve um dia que levei duas horas para vencer duzentos
metros até o escritório. Deita, levanta. Foi tiro para tudo quanto
é lado.
Hoje,
um tiro só. Os Civiltares são conhecidos e temidos pela excelente
pontaria e rapidez. O ladrãozinho, ou o que quer que fosse, garoto
ainda (nunca fui bom para determinar idades), estava estendido, de
costas. A cápsula enterrada no meio da testa. Nenhuma gota de
sangue.
O
vermelho da cápsula me permitiu identificá-la como Cataléptica.
Provoca um estado semelhante à morte durante duas horas. Quando o
atingido acorda, já está encerrado no Isolamento. E aí, bau-bau,
Nicolau! Nunca mais. Tem quem afirme que a Cataléptica torna a
pessoa idiota.
O
Civiltar abaixou-se, apanhou a carteira, devolveu a um senhor, ao
lado. O homem recolheu-a tranquilamente, retirou uma nota, entregou
ao policial. Os Acertos de Taxas de Segurança são feitos no ato.
Acabou-se a burocracia, papéis, recibos, guichês, filas, esperas. O
Civiltar acionou o walkie-talkie, pedindo carro transportador. Puxou
o atingido para um canto da calçada e gritou: “Podem se levantar”.
Mas a gente sempre dá um tempo. Quando ocorre um incidente assim,
seguem-se uns quatro ou cinco, os marginais aproveitam a confusão.
Se
bem que não é fácil. Para cada homem em circulação, existe
praticamente um Civiltar ao seu lado. Eles andam girando a cabeça
para todos os lados e se assemelham a robôs. O treinamento intensivo
desperta neles, compulsivo, o faro, o instinto. Não sei como,
enxergam tudo. Verdade.
Parece
que são treinados pelos mesmos métodos com que se ensinavam os
antigos cães pastores na polícia militar. Ficam condicionados e são
uma beleza na eficiência. Por menos que se goste deles, é preciso
reconhecer: evitam catástrofes nesta cidade. Pior sem eles.
Chegamos
a esse ponto. Aceitar os Civiltares como necessários, suportá-los e
chamá-los de vez em quando. Para mim, ter de fazer isso um dia vai
ser pior que tomar óleo de rícino. O quê? Óleo de rícino? Ainda
existe? Cada coisa de que me lembro de repente. É engraçado.
A
refrescante Casa dos Vidros de Água. Chego à sua porta, todos os
dias, às dez e quarenta. Tenho meia hora para passear por dentro
dela, sentindo a tranquilidade que existe ali. Há dois anos não
consigo começar o meu dia sem entrar e visitar a Casa. Cada dia uma
seção, vagarosamente.
Olhei
a mão. A mancha estava de um vermelho vivo e juro que me pareceu
perceber um aumento na depressão. Bem funda. Aperto, não dói. Coça
ainda, mas é uma coceira agradável, dessas que dão prazer, me
arrepia todo. Loucura, na minha idade, ficar me arrepiando assim com
coceiras.
Saio
da Casa dos Vidros de Água sempre abalado com o irreparável. Não
em relação à minha vida. Ao mundo que me cerca, ao ponto a que as
coisas chegaram. Puxa! Não é resignação que me toma quando deixo
a última sala e atravesso o corredor, artificialmente esverdeado.
Como
se luz opaca atravessasse floresta espessa, rompendo com dificuldade
a galharia, arbustos, ramos, folhas, cipós. Este corredor final me
acalma, me reconcilia. Talvez o mal esteja aí. Nessa reconciliação.
Há uma interrupção brusca quando passo do corredor para a saída.
Todo
dia passeio pelo deserto, broto no vazio de salas e corredores. A
sensação de que tudo é meu é reconfortante. Egoísmo. Mas para
mim é como se as pessoas conspurcassem este recinto, quase igreja,
catedral de nossos tempos, com seus santos, divindades, imagens.
Certamente,
do ponto de vista prático, a Casa é inútil e o que ela exibe
também. Coisas perdidas no tempo, irrecuperáveis. Tudo funciona em
torno da utilidade, conveniência ou não. Esta Casa talvez tenha
sido a última obra considerada sem valor prático para a
civilização.
Não
devia estar na Casa. Entro aqui me perguntando o porquê de tudo. Sem
ter o que responder. Mesmo assim, entro. Me forço a isso, acho
necessário. Se perder essa lucidez que começo a adquirir, estarei
morto. Como os calendários inalterados que dormem no quartinho de
minha casa.
Encontrar
uma saída. Se as pessoas quisessem, haveria possibilidades. Não há
querer, ninguém vê nada. Todos tranquilos, aceitam o inevitável.
Os jornais não dizem palavra. Calaram-se aos poucos. Mesmo que
falassem, não têm força nenhuma. A televisão está vigiada.
Ainda
que não estivesse, a ela nada interessa. Os noticiários são
inócuos. Novelas, inaugurações, planos do governo, promessas de
ministros. Como acreditar nesses ministros, a maioria centenários?
Quase perpétuos, remanescentes da fabulosa Época da Grande
Locupletação.
O
povo ainda fala desses tempos insondáveis. Eles sobrevivem na
tradição oral. Os livros de história omitem. Quem se der a um
grande trabalho, encontrará nos arquivos de jornais alguns
elementos. Distorcidos, é claro. Foi um período de intolerância,
amordaçamento, silêncio.
Quando
eu dava aulas, os estudantes perguntavam sobre tais tempos. Eram
alunos que as escolas reputavam incômodos e terminavam afastados dos
cursos. A direção ouvia as gravações das aulas e me chamava. Para
que eu informasse quem tinha me interrogado. Denunciasse.
No
início, recusava. Havia justificativas. Naquelas classes de
quinhentos alunos e grandes telões, eu alegava, era impossível
saber quem tinha feito a Pergunta Intragável, como dizia a direção.
Que tamanho terão as classes hoje? Mil alunos? Bem que gostaria de
saber.
Depois,
a situação foi ficando mais difícil, era sempre em minhas aulas
que as perguntas intragáveis surgiam. A direção queria saber por
quê. Que tipo de coisas eu andava dizendo fora das classes. Mandaram
me seguir, plantonaram minha casa, grampearam meu telefone.
Solucionaram
obrigando a pessoa interessada em fazer perguntas a se identificar
antes. Muitos se calaram, outros preferiram enfrentar punições.
“Essa época de locupletação não existiu. Foi calúnia”,
garantia a direção. “Fala-se muito, mas onde estão os
documentos? Invenções, mitos.
Isso,
mitos populares. O senhor conhece os mitos populares? O saci existe?
O caipora, a mula sem cabeça, o lobisomem? Que esperança. São
fantasias criadas que se perpetuam para colocar medo nas pessoas.
Está vendo como a tradição oral é coisa perigosa, traiçoeira?”
Por
que os estudantes não recorriam aos jornais, às bibliotecas
públicas, aos arquivos microfilmados? Tudo em mãos do governo. Era
(ainda é) necessário percorrer um longo caminho burocrático,
buscando papéis, carimbos, selos. A tarefa se tornava completamente
impossível.
Impossível
é o termo. Tive alunos que gastaram anos e, quando obtiveram o
último nihil obstat, os arquivos se mudaram. Antigos
funcionários foram removidos e os novos, avisados, não reconheceram
as autorizações. Os alunos tentavam outra vez, a tática do governo
era clara.
Quando
passo pelos bairros da Circunstancial Número 14, vejo os prédios
imensos onde está guardada a memória nacional. Ninguém sabe que
fatos estão depositados ali. Para não dizer das pastas carimbadas:
A SEREM ABERTAS DENTRO DE DOIS SÉCULOS. São documentos da
Locupletação.
– Tio.
– Dois
séculos, imagine...
– O
quê?
Meu
sobrinho, instintivamente, antes de me estender a mão, ia erguendo a
palma em continência. Não aceitei, interrompi, puxei-o para mim e
dei um grande abraço. Ele se conservou rígido, ainda que o rosto
fosse sorridente e cordial. Também sempre foi como um filho para
nós.
– O
que faz por aqui, tio?
– Visitava
a Casa dos Vidros.
– Saudosismo?
– Ééé,
quem sabe?
– Fui
promovido, tio. Sou o primeiro do Novo Exército a atingir o posto de
capitão aos vinte e três anos.
Fiz
uma continência irônica. Ele respondeu, a sério. Sempre foi
circunspecto, compenetrado, com noções de dever e obrigações.
Desde criança. Estava sempre em casa, Adelaide dizia: “Você deve
entrar para o Exército”. Foi quando entendi como ela estava dentro
da realidade.
Muito
mais do que eu podia pensar. Adelaide sempre foi surpresa constante.
Observando nosso relacionamento, vejo que entendi bem pouco a mulher
que tive. Quando menos se esperava, ela fazia uma observação justa,
adequada. Será tarde demais? Diz o povo que nunca é.
Sim,
porque em outros tempos, no século XVII, ou XVIII, teria dito ao
sobrinho: “Vá ser padre”. Naquele dia, quinze anos atrás,
Adelaide começou uma surda e persistente campanha para que o menino
vestisse farda. Mas não almejava um simples praça, queria que ele
fosse Militecno.
Os
melhores postos do país se encontravam em mãos de Militecnos.
Bancos, ministérios, empresas Multis. E como era difícil romper as
barreiras para se formar um Militecno. Além de superar toda a
carreira militar, quem suportava as fantásticas anuidades cobradas
pelas universidades?
– Passo
lá para comemorar. Com o senhor e a tia. Posso?
– Eu
é que insisto. Nem vou dizer à sua tia. Vamos fazer surpresa.
– Tem
comida?
– O
normal.
– Vou
tentar algo na Subsistência. Ah, quer fichas para água?
– Sempre
é bom, jamais consegui me controlar, gasto mesmo.
– E
não é para gastar?
– Mas
tem o racionamento, para dividir melhor.
– Racionamento,
tio? Pensa que é para todo mundo?
No
fundo, não gosto dele. Uso suas facilidades. Penso que tenho direito
a elas, contribuo para que o Novo Exército exista com todos os seus
privilégios. Devo explorá-lo. Afinal, ele deve a mim e a Adelaide o
posto, e a carreira. Quanta roupa ela não lavou? E as comidas?
Eu
acordava todos os dias quinze para as seis, fazia café, arrancava o
preguiçoso da cama. Foram dois anos na Escola Superior de
Integração. Os piores, até ele passar por todas as provas,
principalmente as de fidelidade, neutralidade ideológica e percepção
sensorial.
– Sabe
o que vou fazer, tio?
– Não
tenho ideia.
– Vou
visitar essa tal Casa dos Vidros.
– Boa
coisa.
– Quero
ver como estão aproveitando esse prédio enorme.
Desta
vez correspondeu ao abraço, soltando o corpo. Como posso gostar
desse sobrinho quando sei ao que ele pertence? Se tenho plena
consciência do que será o país na mão dele dentro de alguns anos?
Se houver alguns anos. Tenho as cartas dele, conheço suas ideias.
Nenhuma
vontade de trabalhar. A coceira volta, fico impressionado. O centro
de minha mão está afundando. Só pode ser delírio provocado pelo
calor. Agarro o braço de um homem, ele se assusta. Sei o risco que
corro, toda reação é admitida quando se trata da própria
segurança.
– Calma,
meu senhor, calma. Olhe, me desculpe, mas preciso saber. Olhe a minha
mão. Tem um afundamento aí?
Ele
procurou se livrar. Viu a mão e talvez tenha se apavorado mais.
Ninguém garante que isso não seja contagioso. Só não saiu
correndo porque é impossível correr nestas calçadas atravancadas.
Para mim, a realidade é este afundamento, sem dor, coceira.
Inexplicável como tudo hoje em dia.
Ir
ao médico é bobagem, melhor esperar. Estou desmentindo Adelaide,
ela me julgava hipocondríaco. Não acreditava em minhas dores de
cabeça, nos mal-estares do estômago. Ergui os olhos. Uma sensação
inquietante de alto a baixo. O homem careca me olhava penetrante,
ameaçador.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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