segunda-feira, 1 de julho de 2019

Coçando a palma da mão (alergia?), Souza observa, com fastio, a operação dos Civiltares para dominar bandidos com balas catalépticas

O ônibus chegou, a coceira voltou. Cruzei a borboleta, não havia lugares vagos. Normal, a essa hora. Cumprimentei pessoas que vejo aqui todos os dias, à mesma hora. Os novos são raros. Somos parte do S-7.58, nos permitem este, nenhum outro. É o que dizem as fichas de tráfego.
A ficha indica onde posso andar, os caminhos a percorrer, bairros autorizados, por que lado de calçada circular, condução a tomar. Assim, somos sempre os mesmos dentro do S-7.58. Nos conhecemos todos, mas não nos falamos, raramente nos cumprimentamos. Viajamos em silêncio.
Sou exceção, grito meu bom-dia, os rostos se viram aflitos, perplexos. Depois se voltam para a paisagem, as calçadas congestionadas. Mais um louco, pensam. Todos têm certeza, serei apanhado ao descer. No dia seguinte se surpreendem, sem demonstrar, quando apareço, cumprimentando.
Três pontos antes do final (deve ser dez e vinte) senti uma comichão insuportável. Estava comprimido. Não podia olhar, nem levantar a mão. Segurava a maleta com a esquerda, com a direita me apoiava ao varão. Empurrado para a saída, me despedi. Claro que não responderam.
Acabei de descer, ouvi os estampidos. Secos, ocos. Tão conhecidos. Joguei-me rápido ao chão, conforme severas instruções. Num décimo de segundo, todos em volta estendidos. Vivemos condicionados, nossos reflexos aguçados. Como aqueles ratos que vão comer ao ouvir a campainha.
Quantas vezes por dia me atiro ao chão nesta cidade. Se alguém filmasse durante algumas horas, sem registrar o som, veria uma daquelas velhas comédias de Harold Loyd, o Gordo e o Magro, Mack Sennet. Deita, levanta, deita, levanta. E os rostos? Todo mundo apavorado, tenso.
As pessoas disputam centímetros de calçada. Batem cabeças, se beijam, ficam rosto a rosto, cheiram o pó, se levantam imundas, xingam, protestam. Teve um dia que levei duas horas para vencer duzentos metros até o escritório. Deita, levanta. Foi tiro para tudo quanto é lado.
Hoje, um tiro só. Os Civiltares são conhecidos e temidos pela excelente pontaria e rapidez. O ladrãozinho, ou o que quer que fosse, garoto ainda (nunca fui bom para determinar idades), estava estendido, de costas. A cápsula enterrada no meio da testa. Nenhuma gota de sangue.
O vermelho da cápsula me permitiu identificá-la como Cataléptica. Provoca um estado semelhante à morte durante duas horas. Quando o atingido acorda, já está encerrado no Isolamento. E aí, bau-bau, Nicolau! Nunca mais. Tem quem afirme que a Cataléptica torna a pessoa idiota.
O Civiltar abaixou-se, apanhou a carteira, devolveu a um senhor, ao lado. O homem recolheu-a tranquilamente, retirou uma nota, entregou ao policial. Os Acertos de Taxas de Segurança são feitos no ato. Acabou-se a burocracia, papéis, recibos, guichês, filas, esperas. O Civiltar acionou o walkie-talkie, pedindo carro transportador. Puxou o atingido para um canto da calçada e gritou: “Podem se levantar”. Mas a gente sempre dá um tempo. Quando ocorre um incidente assim, seguem-se uns quatro ou cinco, os marginais aproveitam a confusão.
Se bem que não é fácil. Para cada homem em circulação, existe praticamente um Civiltar ao seu lado. Eles andam girando a cabeça para todos os lados e se assemelham a robôs. O treinamento intensivo desperta neles, compulsivo, o faro, o instinto. Não sei como, enxergam tudo. Verdade.
Parece que são treinados pelos mesmos métodos com que se ensinavam os antigos cães pastores na polícia militar. Ficam condicionados e são uma beleza na eficiência. Por menos que se goste deles, é preciso reconhecer: evitam catástrofes nesta cidade. Pior sem eles.
Chegamos a esse ponto. Aceitar os Civiltares como necessários, suportá-los e chamá-los de vez em quando. Para mim, ter de fazer isso um dia vai ser pior que tomar óleo de rícino. O quê? Óleo de rícino? Ainda existe? Cada coisa de que me lembro de repente. É engraçado.
A refrescante Casa dos Vidros de Água. Chego à sua porta, todos os dias, às dez e quarenta. Tenho meia hora para passear por dentro dela, sentindo a tranquilidade que existe ali. Há dois anos não consigo começar o meu dia sem entrar e visitar a Casa. Cada dia uma seção, vagarosamente.
Olhei a mão. A mancha estava de um vermelho vivo e juro que me pareceu perceber um aumento na depressão. Bem funda. Aperto, não dói. Coça ainda, mas é uma coceira agradável, dessas que dão prazer, me arrepia todo. Loucura, na minha idade, ficar me arrepiando assim com coceiras.
Saio da Casa dos Vidros de Água sempre abalado com o irreparável. Não em relação à minha vida. Ao mundo que me cerca, ao ponto a que as coisas chegaram. Puxa! Não é resignação que me toma quando deixo a última sala e atravesso o corredor, artificialmente esverdeado.
Como se luz opaca atravessasse floresta espessa, rompendo com dificuldade a galharia, arbustos, ramos, folhas, cipós. Este corredor final me acalma, me reconcilia. Talvez o mal esteja aí. Nessa reconciliação. Há uma interrupção brusca quando passo do corredor para a saída.
Todo dia passeio pelo deserto, broto no vazio de salas e corredores. A sensação de que tudo é meu é reconfortante. Egoísmo. Mas para mim é como se as pessoas conspurcassem este recinto, quase igreja, catedral de nossos tempos, com seus santos, divindades, imagens.
Certamente, do ponto de vista prático, a Casa é inútil e o que ela exibe também. Coisas perdidas no tempo, irrecuperáveis. Tudo funciona em torno da utilidade, conveniência ou não. Esta Casa talvez tenha sido a última obra considerada sem valor prático para a civilização.
Não devia estar na Casa. Entro aqui me perguntando o porquê de tudo. Sem ter o que responder. Mesmo assim, entro. Me forço a isso, acho necessário. Se perder essa lucidez que começo a adquirir, estarei morto. Como os calendários inalterados que dormem no quartinho de minha casa.
Encontrar uma saída. Se as pessoas quisessem, haveria possibilidades. Não há querer, ninguém vê nada. Todos tranquilos, aceitam o inevitável. Os jornais não dizem palavra. Calaram-se aos poucos. Mesmo que falassem, não têm força nenhuma. A televisão está vigiada.
Ainda que não estivesse, a ela nada interessa. Os noticiários são inócuos. Novelas, inaugurações, planos do governo, promessas de ministros. Como acreditar nesses ministros, a maioria centenários? Quase perpétuos, remanescentes da fabulosa Época da Grande Locupletação.
O povo ainda fala desses tempos insondáveis. Eles sobrevivem na tradição oral. Os livros de história omitem. Quem se der a um grande trabalho, encontrará nos arquivos de jornais alguns elementos. Distorcidos, é claro. Foi um período de intolerância, amordaçamento, silêncio.
Quando eu dava aulas, os estudantes perguntavam sobre tais tempos. Eram alunos que as escolas reputavam incômodos e terminavam afastados dos cursos. A direção ouvia as gravações das aulas e me chamava. Para que eu informasse quem tinha me interrogado. Denunciasse.
No início, recusava. Havia justificativas. Naquelas classes de quinhentos alunos e grandes telões, eu alegava, era impossível saber quem tinha feito a Pergunta Intragável, como dizia a direção. Que tamanho terão as classes hoje? Mil alunos? Bem que gostaria de saber.
Depois, a situação foi ficando mais difícil, era sempre em minhas aulas que as perguntas intragáveis surgiam. A direção queria saber por quê. Que tipo de coisas eu andava dizendo fora das classes. Mandaram me seguir, plantonaram minha casa, grampearam meu telefone.
Solucionaram obrigando a pessoa interessada em fazer perguntas a se identificar antes. Muitos se calaram, outros preferiram enfrentar punições. “Essa época de locupletação não existiu. Foi calúnia”, garantia a direção. “Fala-se muito, mas onde estão os documentos? Invenções, mitos.
Isso, mitos populares. O senhor conhece os mitos populares? O saci existe? O caipora, a mula sem cabeça, o lobisomem? Que esperança. São fantasias criadas que se perpetuam para colocar medo nas pessoas. Está vendo como a tradição oral é coisa perigosa, traiçoeira?”
Por que os estudantes não recorriam aos jornais, às bibliotecas públicas, aos arquivos microfilmados? Tudo em mãos do governo. Era (ainda é) necessário percorrer um longo caminho burocrático, buscando papéis, carimbos, selos. A tarefa se tornava completamente impossível.
Impossível é o termo. Tive alunos que gastaram anos e, quando obtiveram o último nihil obstat, os arquivos se mudaram. Antigos funcionários foram removidos e os novos, avisados, não reconheceram as autorizações. Os alunos tentavam outra vez, a tática do governo era clara.
Quando passo pelos bairros da Circunstancial Número 14, vejo os prédios imensos onde está guardada a memória nacional. Ninguém sabe que fatos estão depositados ali. Para não dizer das pastas carimbadas: A SEREM ABERTAS DENTRO DE DOIS SÉCULOS. São documentos da Locupletação.
Tio.
Dois séculos, imagine...
O quê?
Meu sobrinho, instintivamente, antes de me estender a mão, ia erguendo a palma em continência. Não aceitei, interrompi, puxei-o para mim e dei um grande abraço. Ele se conservou rígido, ainda que o rosto fosse sorridente e cordial. Também sempre foi como um filho para nós.
O que faz por aqui, tio?
Visitava a Casa dos Vidros.
Saudosismo?
Ééé, quem sabe?
Fui promovido, tio. Sou o primeiro do Novo Exército a atingir o posto de capitão aos vinte e três anos.
Fiz uma continência irônica. Ele respondeu, a sério. Sempre foi circunspecto, compenetrado, com noções de dever e obrigações. Desde criança. Estava sempre em casa, Adelaide dizia: “Você deve entrar para o Exército”. Foi quando entendi como ela estava dentro da realidade.
Muito mais do que eu podia pensar. Adelaide sempre foi surpresa constante. Observando nosso relacionamento, vejo que entendi bem pouco a mulher que tive. Quando menos se esperava, ela fazia uma observação justa, adequada. Será tarde demais? Diz o povo que nunca é.
Sim, porque em outros tempos, no século XVII, ou XVIII, teria dito ao sobrinho: “Vá ser padre”. Naquele dia, quinze anos atrás, Adelaide começou uma surda e persistente campanha para que o menino vestisse farda. Mas não almejava um simples praça, queria que ele fosse Militecno.
Os melhores postos do país se encontravam em mãos de Militecnos. Bancos, ministérios, empresas Multis. E como era difícil romper as barreiras para se formar um Militecno. Além de superar toda a carreira militar, quem suportava as fantásticas anuidades cobradas pelas universidades?
Passo lá para comemorar. Com o senhor e a tia. Posso?
Eu é que insisto. Nem vou dizer à sua tia. Vamos fazer surpresa.
Tem comida?
O normal.
Vou tentar algo na Subsistência. Ah, quer fichas para água?
Sempre é bom, jamais consegui me controlar, gasto mesmo.
E não é para gastar?
Mas tem o racionamento, para dividir melhor.
Racionamento, tio? Pensa que é para todo mundo?
No fundo, não gosto dele. Uso suas facilidades. Penso que tenho direito a elas, contribuo para que o Novo Exército exista com todos os seus privilégios. Devo explorá-lo. Afinal, ele deve a mim e a Adelaide o posto, e a carreira. Quanta roupa ela não lavou? E as comidas?
Eu acordava todos os dias quinze para as seis, fazia café, arrancava o preguiçoso da cama. Foram dois anos na Escola Superior de Integração. Os piores, até ele passar por todas as provas, principalmente as de fidelidade, neutralidade ideológica e percepção sensorial.
Sabe o que vou fazer, tio?
Não tenho ideia.
Vou visitar essa tal Casa dos Vidros.
Boa coisa.
Quero ver como estão aproveitando esse prédio enorme.
Desta vez correspondeu ao abraço, soltando o corpo. Como posso gostar desse sobrinho quando sei ao que ele pertence? Se tenho plena consciência do que será o país na mão dele dentro de alguns anos? Se houver alguns anos. Tenho as cartas dele, conheço suas ideias.
Nenhuma vontade de trabalhar. A coceira volta, fico impressionado. O centro de minha mão está afundando. Só pode ser delírio provocado pelo calor. Agarro o braço de um homem, ele se assusta. Sei o risco que corro, toda reação é admitida quando se trata da própria segurança.
Calma, meu senhor, calma. Olhe, me desculpe, mas preciso saber. Olhe a minha mão. Tem um afundamento aí?
Ele procurou se livrar. Viu a mão e talvez tenha se apavorado mais. Ninguém garante que isso não seja contagioso. Só não saiu correndo porque é impossível correr nestas calçadas atravancadas. Para mim, a realidade é este afundamento, sem dor, coceira. Inexplicável como tudo hoje em dia.
Ir ao médico é bobagem, melhor esperar. Estou desmentindo Adelaide, ela me julgava hipocondríaco. Não acreditava em minhas dores de cabeça, nos mal-estares do estômago. Ergui os olhos. Uma sensação inquietante de alto a baixo. O homem careca me olhava penetrante, ameaçador.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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