terça-feira, 2 de julho de 2019

Boa noite senhor

Ele me esperava à saída do baile. Parado na esquina, retocou as pontas da gravata borboleta e, ainda de longe, magrinho, idade incerta, sorria para mim.
Boa noite.
Boa noite, senhor.
Andando a meu lado, disse que me viu dançar com a loira. Ele a achava linda, com sua boca pintada. Respondi que a odiava. Ele disse que sofreu muito com as mulheres — um puxão raivoso na gravatinha azul. Da própria mulher, casado e com filho, não queria saber.
Falava tanto e tão depressa, a voz pastosa de saliva. Acendi um cigarro — não é que os dedos tremiam? Perguntou se ela me provocara, mas não respondi. Compreendia muito bem, a mulher sem piedade enlouquece um pobre moço. Capaz de matar a loira de olho pérfido.
Ainda bem não tenho olho verde!
Piscou um olho de cada vez. Eu não sabia nada do mundo, ele disse, a cada palavra a voz mais rouca. Intrigava gentilmente os plátanos, a loira, a própria lua no céu, uma baba de lesma no dente de ouro..-Não falava da loira, de mim ou dele — e como se eu soubesse de quem.
Perto da igreja o guincho aflito dos morcegos.
Ele perguntou as horas. Eu não tinha relógio. Parados na esquina, injuriou ainda mais a loira, que tinha boca pintada, promessa de delícias loucas, mas; seu olhar era frio, seu loiro coração era amargo. Sabia de outras bocas, a sua, por exemplo, rainha do maior gozo. Molhou o lábio com a ponta da língua vermelha — no canto a espuma do agonizante. Se eu nunca o vira, havia muito que esperava. Tudo sabia de mim, quem eu era: “A um menino bonito oferecia o trono do mundo”. Até dinheiro, ele disse, tesouros que eu não ganhava de nenhuma loira.
Protestei que ela não merecia ódio, moça de boa família.
Olhou o relógio no pulso: três horas da manhã.
Boa noite, senhor.
Sem responder, subiu as mãos trêmulas ao nó de minha gravata — dois ratos de focinhos quentes e úmidos.
Tem cabelo no peito!
Na ponta dos dedos o cuidado reverente de quem consagra o cálice.
Ora, quem não...
Seus olhos se abriam para a lua, eu podia jurar - que verdes.
Como é forte!
Meus Deus, aquele riso... Gritinhos de morcego velho e cego. Falando do vento que anunciava chuva, ensaiou um gesto — o gesto da loira! —, a ponta da língua se mexia igual a um papel debaixo da porta.
Não tem medo?
Um gato saltou do muro. Espiei do gato para o homem e a rua deserta: ajoelhado aos pés da lua. Gotas de chuva estalavam nas folhas como passos de criança perdida.
Boa noite, boa noite, boa noite.
Chorava o dente de ouro, as lágrimas riscavam as velhas rugas. Escondeu-as na mão — o relógio faiscando no pulso.
O meu presente?
Ele olhou o relógio:
De estimação. Lembrança de minha mãe.
As folhas úmidas brilhavam na calçada. Todas as árvores pingavam a duas portas de casa. — Melhor que... Não ficava bem dar senhorio.
... volte daqui.
Quis me pegar na mão e guardei-a no bolso.
Mais um pouco — ele pediu.
Todas as árvores gotejavam. Ali na porta de casa — o relógio na palma da mão. Ele me perguntou as horas.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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