Só
um tema amordaça um grande escritor como o francês Roland Barthes
(1915-1980): a morte. Em particular, a morte da mãe, que é, também,
a morte da origem. Em Diário de luto (Martins Fontes,
tradução de Leyla Perrone-Moisés), conjunto de 330 notas que o
filósofo começou a escrever em 26 de outubro de 1977, dia seguinte
ao da morte de sua mãe, e encerrou em 15 de setembro de 1979, as
palavras estão sempre a lhe escapar. Elas o desprezam. Elas lhe
fogem.
Barthes
balbucia. Escreve seu diário apesar da sensação crescente de que a
escrita sôfrega não dá conta de seu tema. Trata-se de luta
destinada ao fracasso. Mas é justamente da escrita do fracasso que
se trata. É dessa derrota anterior que ele, o escritor, precisa
partir. Que nome dar à morte? Palavra vazia, que fala de uma
ausência, não permite sínteses, tampouco suporta pensamentos. Ao
contrário, ela os massacra. Ela os amordaça.
A
primeira anotação traz só duas frases e uma dúvida: “Primeira
noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?”. As núpcias falam
de um encontro, mas a morte é um desencontro. Noite, portanto,
aniquilada, a partir da qual Barthes se impõe – como um menino
agarrado à saia inexistente – a tarefa de escrever. Não para
pegar ou para “chegar a”; mas para consolar e, talvez mais ainda,
aceitar a inexistência de um consolo. A isso, aliás, chamamos luto.
Não algo que se pega, mas que se atravessa.
Afirma
Barthes: “Todos calculam – eu o sinto – o grau de intensidade
do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios)
medir quando alguém está atingido”. Certo: a morte aponta para o
impossível, coloca-o em cena. Mas uma pergunta ainda pode ser feita:
o que é possível fazer do impossível? Que papel atuar? Em qual
script confiar? Que máscaras vestir?
A
mãe morta: ainda ousamos falar dela. Mas será dela mesma que
falamos? Reflete Barthes: “Na frase ‘Ela não sofre mais’, a
que, a quem remete o ela?”. A escrita esbarra em seu limite quando,
na morte, tem como objeto o que já não existe. Não há objeto
algum. Só palavras, e mais palavras, que Barthes espreme em fichas
metódicas. Isso é um livro? Responde Barthes: “Tomando estas
notas, confio-me à banalidade que há em mim”.
Sim,
porque a morte conduz ao banal. Mortos, nos tornamos todos iguais:
não passamos de restos. Dizem solenemente: “restos mortais”. Do
que fomos – as diferenças, as “personalidades”, os estilos, os
vícios, as manias – nada mais está ali. Não é da mãe que se
trata, mas de um resto da mãe, atrás do qual Roland Barthes, outra
vez como um menino em desespero, insiste em procurá-la.
A
morte coloca a literatura sob suspeita. Aponta sua fragilidade, sua
incapacidade. Diante da morte, a literatura é impotente. “Não
quero falar disso por medo de fazer literatura”, ele admite.
Mas acrescenta: “Embora, de fato, a literatura se origine dessas
verdades”. De fato, a literatura surge de uma falta, caso contrário
ninguém teria paciência de escrever. Ficções, poemas, para que
servem? Diz Barthes: “O espantoso destas notas é o sujeito
devastado submetido à presença de espírito”. Não o
espírito religioso que sobrevive à carne, mas o espírito humano –
sensibilidade, inteligência, altivez – que só existe nos vivos.
Da
mãe, restam as últimas palavras. “Meu R, meu R”, ela murmura.
“Estou aqui.” E ainda, a um passo de abandonar a vida, mas sem
largar o papel de mãe: “Você está mal, está mal sentado”. As
palavras como últimos sinais (fronteira) de uma presença. Sem as
palavras, a dolorosa verdade: nada há. Ao lembrar do corpo que
sustentou essas palavras de despedida, ele anota: “Cada vez menos
coisas a escrever, a dizer, exceto isto (mas não posso dizê-lo a
ninguém)”. Não pode e, no entanto, diz. Admite Barthes a falência
de uma língua separada de seu corpo. O silêncio, a repugnância.
Há,
porém, uma vantagem no luto: a perda terrível já aconteceu.
Assinala Barthes – “luto: região atroz onde não tenho mais
medo”. A morte anula todos os medos, porque os ultrapassa. O
luto nunca é o que se pensa que seja. Diz: “Assusta-me
absolutamente o caráter descontínuo do luto”. Também o
teatro da morte (o preto, o choro, o desespero) fracassa. Tudo, na
morte, é fracasso. O pior: na vida, quase tudo também. Que se
observem as palavras com seu gaguejar. Barthes luta (luto) para
escapar de qualquer tipo de teatro – para ter “a morte em si”.
Repreende-se: “Não dizer Luto. É psicanalítico demais.
Não estou de luto. Estou triste”.
Luto:
“Mal-estar, situação sem chantagem possível”. Trata-se do
irremediável. Não existe anestésico. Nada. Os bons sentimentos
tornam-se inúteis. “Todos são ‘muito gentis’ – e, no
entanto, sinto-me só.” As próprias palavras se tornam
traiçoeiras. Por exemplo, a palavra desespero, quase sempre
associada à morte. Escreve: “Desespero: a palavra é
demasiadamente teatral, faz parte da linguagem. Uma pedra”. Isso
porque as palavras, ditas em referência ao inexistente, nada
sustentam, limitam-se a pesar.
A
morte embaralha o Tempo. Mais ainda: ela o destrói. Onde está o
presente? “Sofro com o medo do que aconteceu”, Barthes anota.
Dá-se conta, então, que repete um pensamento de Donald Winnicott:
“Medo de um desmoronamento que já aconteceu”. Mas se o
que está para vir “já aconteceu”, onde está o futuro? Eis o
que a morte faz: impede a visão do futuro. Veda-o. Lembra Barthes
que Marcel Proust falava de “chagrin” (“desgosto”) e
não de “deuil” (“luto”). A morte ensina: é preciso
ter cuidado com as palavras.
Tenta
pensar, enfim, no desgosto que atravessa e nas coisas do mundo que se
afastam. Encontra algo: “O que me parece mais afastado de meu
desgosto, de mais antipático a ele: a leitura do jornal Le Monde
e suas maneiras ácidas e informadas”. A morte não é ácida –
ela não é. Não carrega nenhuma informação; ao contrário, é a
ausência absoluta de informação. O que se sabe de um morto? Nada.
Mesmo os necrológicos dos jornais, o que fazem senão embalsamar os
que partiram? Sugere Barthes: talvez a morte não passe de uma
“espécie de epopeia sem atitude heroica”. Eis o buraco (cova):
devemos prestar atenção no “sem”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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