terça-feira, 2 de julho de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 5

1

Nem precisa dizer que levantei da cama, vestido como estava, e tateei em volta. Enfiei a mão no bolso à procura de fósforos. Andei até a parede, bati, e comecei a apalpar, procurando a luz, vivendo naquela voz, como se vive dentro de uma vida, por quanto tempo não consigo determinar nem com precisão aproximada: no escuro e no silêncio, tempo é coisa muito relativa.
Quando consegui sair do quarto, desci uma escada e desaguei no grande salão, o salão da festa passada, a que não houve, o salão da festa que vai haver, e, que, provavelmente, quem sabe.
A voz enchia o ambiente como um dia.

2

De repente, a voz parou, e eu me achei ali, acho, de pé, sozinho, no meio do salão, algo assim, assim como se, digamos, um rio que eu navegasse secasse de chofre, e a gente lá remando que nem um idiota no meio do deserto.
Uma fúria desgraçada tomou conta. E comecei a esmurrar as paredes, gritando: mais, mais!
Chamou, senhor?
O criado entrou estúpido na sala, fechando o roupão como uma banana que tentasse fechar sua casca depois de descascada.
A voz! Cadê a voz?
Voz, senhor?
Porra, a voz que estava cantando até agora mesmo!
Não ouvi voz nenhuma, senhor. Aliás, nem seria possível. Nesta casa, só estamos o senhor e eu.
Vertiginei.
A ideia de uma voz sem dono, passeando, enchendo a casa, não estava nos meus planos.
Insisti:
Tem certeza?
Absoluta, senhor.
Ainda bem que ainda tinha gente com certezas absolutas.
Eu já não tinha mais nenhuma. Ou quase nenhuma, o que é ainda pior.
Dispensei o criado, com um olhar que agiu com o efeito de um golpe de judô, e voltei à minha perplexidade.
Mal o serviçal se retirou, comecei a procurar uma porta secreta.
Se bem me lembro, em alguns filmes, a chave secreta ficava por aqui, quem sabe, aqui, ora, como é que não pensei nisso? Aqui! Não, não era aqui. Se não era aqui, onde?
A voz que ouvi vinha de baixo. Para baixo, portanto, era para onde eu devia ir. Nessa hora, ouvi a voz do professor Propp:
Em caso de dúvida, vai abrindo portas.
E portas eu fui abrindo. Uma dava para uma escada que descia. Adivinhe se eu desci.

3

Norma cantava.
E então vi Norma. Vi no sentido mais pleno de ver. Ver como quem nasce, como quem goza e morre.
Lá estava ela, nua como um susto, deitada naquela cama, cercada pelos três paus duros. Repousava entre as pernas do mais moreno, cabeça inclinada sobre seu caralho, a cabeçorra roxa despontando entre seus cabelos. Um outro, parecia ser o mais moço, beijava sua bunda. E o mais avantajado olhava a cena, acariciando o pau de leve, como quem mantém calma uma pomba para que não voe.
Congelei.
Sabia que você vinha, ela disse.
Nunca tinha ouvido sua voz (ou tinha?). Mas sabia que era a voz que cantava ainda há pouco. E não havia dúvida, era a voz que eu tinha ouvido naquele telefonema durante a festa.
Foi um momento, e ela me chamou com um aceno de dedo.
Tirei a roupa, entrei no rolo e fui fundo.

4

No escuro e no silêncio, tempo é coisa muito relativa.
Voltei a mim um pouco antes de amanhecer, aquela hora que, dizem, é a mais escura da noite.
Tinha dormido com roupa e tudo, o criado só tinha me jogado uma coberta por cima, e senti as barras da calça ainda molhadas pela tempestade que atravessei para voltar até aqui.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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