1
Nem
precisa dizer que levantei da cama, vestido como estava, e tateei em
volta. Enfiei a mão no bolso à procura de fósforos. Andei até a
parede, bati, e comecei a apalpar, procurando a luz, vivendo naquela
voz, como se vive dentro de uma vida, por quanto tempo não consigo
determinar nem com precisão aproximada: no escuro e no silêncio,
tempo é coisa muito relativa.
Quando
consegui sair do quarto, desci uma escada e desaguei no grande salão,
o salão da festa passada, a que não houve, o salão da festa
que vai haver, e, que, provavelmente, quem sabe.
A
voz enchia o ambiente como um dia.
2
De
repente, a voz parou, e eu me achei ali, acho, de pé, sozinho, no
meio do salão, algo assim, assim como se, digamos, um rio que eu
navegasse secasse de chofre, e a gente lá remando que nem um idiota
no meio do deserto.
Uma
fúria desgraçada tomou conta. E comecei a esmurrar as paredes,
gritando: mais, mais!
— Chamou,
senhor?
O
criado entrou estúpido na sala, fechando o roupão como uma banana
que tentasse fechar sua casca depois de descascada.
— A
voz! Cadê a voz?
— Voz,
senhor?
— Porra,
a voz que estava cantando até agora mesmo!
— Não
ouvi voz nenhuma, senhor. Aliás, nem seria possível. Nesta casa, só
estamos o senhor e eu.
Vertiginei.
A
ideia de uma voz sem dono, passeando, enchendo a casa, não estava
nos meus planos.
Insisti:
— Tem
certeza?
— Absoluta,
senhor.
Ainda
bem que ainda tinha gente com certezas absolutas.
Eu
já não tinha mais nenhuma. Ou quase nenhuma, o que é ainda
pior.
Dispensei
o criado, com um olhar que agiu com o efeito de um golpe de judô, e
voltei à minha perplexidade.
Mal
o serviçal se retirou, comecei a procurar uma porta secreta.
Se
bem me lembro, em alguns filmes, a chave secreta ficava por aqui,
quem sabe, aqui, ora, como é que não pensei nisso? Aqui! Não, não
era aqui. Se não era aqui, onde?
A
voz que ouvi vinha de baixo. Para baixo, portanto, era para
onde eu devia ir. Nessa hora, ouvi a voz do professor Propp:
— Em
caso de dúvida, vai abrindo portas.
E
portas eu fui abrindo. Uma dava para uma escada que descia. Adivinhe
se eu desci.
3
Norma
cantava.
E
então vi Norma. Vi no sentido mais pleno de ver. Ver como quem
nasce, como quem goza e morre.
Lá
estava ela, nua como um susto, deitada naquela cama, cercada pelos
três paus duros. Repousava entre as pernas do mais moreno, cabeça
inclinada sobre seu caralho, a cabeçorra roxa despontando entre seus
cabelos. Um outro, parecia ser o mais moço, beijava sua bunda. E o
mais avantajado olhava a cena, acariciando o pau de leve, como quem
mantém calma uma pomba para que não voe.
Congelei.
— Sabia
que você vinha, ela disse.
Nunca
tinha ouvido sua voz (ou tinha?). Mas sabia que era a voz que cantava
ainda há pouco. E não havia dúvida, era a voz que eu tinha ouvido
naquele telefonema durante a festa.
Foi
um momento, e ela me chamou com um aceno de dedo.
Tirei
a roupa, entrei no rolo e fui fundo.
4
No
escuro e no silêncio, tempo é coisa muito relativa.
Voltei
a mim um pouco antes de amanhecer, aquela hora que, dizem, é a mais
escura da noite.
Tinha
dormido com roupa e tudo, o criado só tinha me jogado uma coberta
por cima, e senti as barras da calça ainda molhadas pela tempestade
que atravessei para voltar até aqui.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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