Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal
ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor
ouvindo seguinte, me entende. O Paredão existe lá. Senhor vá,
senhor veja. E um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias.
Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a
qualquer entrar o borbôlo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda
muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes.
Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com
lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro,
os cachorros latem, forte tempo. Em toda a parte é desse jeito. Mas
aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer.
Cachorros que já lamberam muito sangue. Mesmo, o espaço é tão
calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas.
Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha
ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava
com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava?
E eu não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só! é a rua
da guerra... O demónio na rua, no meio do redemunho... O
senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.
Sei
que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por
disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor
quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos
outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus
feitos já revogaram, prescrição dita.Tenho meu respeito firmado.
Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta
― só o deo-gratias, e o troco. Bobeia. Na feira de São
João Branco, um homem andava falando! ― A pátria não pode nada
com a velhice... Discordo. A pátria é dos velhos, mais. Era um
homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras
retiradas ― ele dizia! aqueles todos anéis davam até choque
elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de
contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte,
reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes,
vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que
deram fogo, na barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um
vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um
roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são
outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho
que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as
coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de
alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se
fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é
que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que
ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O
senhor mesmo sabe.
Mire
veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana
Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo
notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia
mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de
anú-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito
anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta
que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões,
nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e
capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com
Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou
tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se
rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha
preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido
aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era
um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu
gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu
já estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais.
Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o
trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando
de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no
São Josezinho da Serra ― no indo para o Riacho-das-Almas e vindo
do Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando
dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até
daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e
conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos
e minha boca. De lá para lá, os oitos anos se baldavam. Nem
estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha
memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo,
agora não gostasse mais de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu
sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas
o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu
queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não
é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria
vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra
a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a
gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do
que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!
Sendo
isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo,
sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz,
então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que
formaram passado para mim com mais pertença.Vou lhe falar. Lhe falo
do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém
ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas ― e só essas poucas
veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de
atenção.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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