Bem,
já tenho 72 anos há oito dias e noites e nunca mais vou poder dizer
isso.
Os
últimos dois meses têm sido ruins. Cansado. Física e
espiritualmente. A morte não significa nada. É caminhar arrastando
a bunda, é quando as palavras não vêm voando da máquina, é o
engano.
Agora,
no meu lábio inferior e embaixo dele, há um grande inchaço. E eu
não tenho energia. Não fui ao hipódromo hoje. Só fiquei na cama.
Cansado, cansado. A multidão dos domingos no hipódromo é a pior
delas. Tenho problemas com o rosto humano. Acho muito difícil olhar
para ele. Encontro a soma total da vida de cada pessoa escrita nele e
é uma visão terrível. Quando se veem milhares de rostos em um só
dia, é cansativo dos pés à cabeça. E por todas as entranhas. Os
domingos são tão lotados. É o dia dos amadores. Eles gritam e
praguejam. Ficam enfurecidos. Depois, ficam duros e vão embora,
falidos. O que esperavam?
Fiz
uma operação de catarata no meu olho direito há alguns meses. A
operação não era tão simples como indicavam informações erradas
que obtive de pessoas que diziam ter feito operações no olho. Ouvi
minha mulher falando com a mãe dela ao telefone: “Você disse que
terminou em alguns minutos? E que dirigiu pra casa depois?”. Outro
cara mais velho me disse: “Ah, não é nada, acaba num instante e
você pode fazer tudo normalmente”. Outros falaram da operação de
uma forma casual. Foi um passeio no parque. Bem, não pedi a essas
pessoas informações sobre a operação, elas apareceram. Depois de
um tempo, comecei a acreditar. Mesmo assim, duvidava que uma coisa
delicada como um olho pudesse ser tratada mais ou menos como cortar
uma unha do pé.
Na
minha primeira consulta ao médico, ele examinou o olho e disse que
eu precisava ser operado.
“Tudo
bem”, eu disse, “vamos lá.”
“O
quê?”, ele perguntou.
“Vamos
fazer agora. Vamos nessa!”
“Espere”,
disse ele, “primeiro temos que marcar o hospital. Depois, têm
outras preparações. Primeiro, quero te mostrar um filme sobre a
operação. Só dura uns 15 minutos.”
“A
operação?”
“Não,
o filme.”
O
que acontece é que eles tiram todo o cristalino do olho e o
substituem por um cristalino artificial. O cristalino é costurado e
o olho tem que se adaptar e se recuperar. Depois de três semanas, os
pontos são retirados. Não é nenhum passeio no parque e a operação
demora muito mais que “uns dois minutos”.
De
qualquer forma, quando tudo terminou, a mãe da minha mulher disse
que provavelmente estava pensando no procedimento pós-operatório. E
o velho? Perguntei a ele: “Quanto tempo levou para que a tua visão
ficasse realmente melhor depois da operação no olho?”. “Não
tenho certeza de ter operado”, disse ele.
Será
que eu estou com esse lábio gordo por ter bebido água na tigela do
gato?
Me
sinto um pouco melhor esta noite. Seis dias por semana no hipódromo
podem desgastar qualquer um. Tente uma vez. Daí, volte pra casa e
trabalhe na sua novela.
Ou
talvez a morte esteja me mandando alguns sinais?
Outro
dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a
fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no
caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o
jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo.
Impossível. E, pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser
verdadeiramente descoberto. E todos aqueles que tinham medo de mim ou
que me odiavam quando eu estava vivo vão subitamente me aceitar.
Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes
e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida.
Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais.
Será suficiente para fazer os deuses vomitarem. A raça humana
exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.
Os
filhos da puta. É isso aí, me sinto melhor. Maldita raça humana. É
isso aí, me sinto melhor.
A
noite está refrescando. Talvez eu pague a conta do gás. Lembro que
no bairro central sul de L. A. mataram uma mulher chamada Love por
não ter pago a conta do gás. A companhia queria desligar o gás. A
mulher os expulsou. Não me lembro com o quê. Talvez uma pá. A
polícia veio. Não lembro como aconteceu. Acho que ela procurou
alguma coisa no avental. Eles atiraram e a mataram.
Tudo
bem, tudo bem, vou pagar a conta do gás.
Estou
preocupado com minha novela. É sobre um detetive. Mas eu fico
colocando-o em situações quase impossíveis e daí tenho que
tirá-lo delas. Às vezes, penso numa solução quando estou no
hipódromo. Sei que meu editor está curioso. Talvez ele ache que o
texto não seja literário. Digo que qualquer coisa que faço é
literário, mesmo que eu tente que não seja literário. Ele já
deveria confiar em mim. Bem, se ele não quiser o texto, vou
despejá-lo em outro lugar. Vai vender tão bem quanto qualquer coisa
que escrevi, não porque é melhor, mas porque é tão bom quanto
antes e meus leitores malucos estão prontos pra ele.
Olhe,
talvez uma boa noite de sono hoje e eu acorde de manhã sem esse
lábio grosso. Pode me imaginar me inclinando no guichê, com esse
enorme lábio, dizendo: “20 no cavalo 6?”. Claro. Eu sei. O cara
não ia nem notar. Minha mulher me perguntou: “O seu lábio não
foi sempre assim?”.
Meu
Deus.
Você
sabia que os gatos dormem 20 das 24 horas do dia? Não se admira que
tenham melhor aparência do que eu.
Charles
Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros
tomaram conta do navio
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