terça-feira, 2 de julho de 2019

24/08/92 - 00:28

Bem, já tenho 72 anos há oito dias e noites e nunca mais vou poder dizer isso.
Os últimos dois meses têm sido ruins. Cansado. Física e espiritualmente. A morte não significa nada. É caminhar arrastando a bunda, é quando as palavras não vêm voando da máquina, é o engano.
Agora, no meu lábio inferior e embaixo dele, há um grande inchaço. E eu não tenho energia. Não fui ao hipódromo hoje. Só fiquei na cama. Cansado, cansado. A multidão dos domingos no hipódromo é a pior delas. Tenho problemas com o rosto humano. Acho muito difícil olhar para ele. Encontro a soma total da vida de cada pessoa escrita nele e é uma visão terrível. Quando se veem milhares de rostos em um só dia, é cansativo dos pés à cabeça. E por todas as entranhas. Os domingos são tão lotados. É o dia dos amadores. Eles gritam e praguejam. Ficam enfurecidos. Depois, ficam duros e vão embora, falidos. O que esperavam?
Fiz uma operação de catarata no meu olho direito há alguns meses. A operação não era tão simples como indicavam informações erradas que obtive de pessoas que diziam ter feito operações no olho. Ouvi minha mulher falando com a mãe dela ao telefone: “Você disse que terminou em alguns minutos? E que dirigiu pra casa depois?”. Outro cara mais velho me disse: “Ah, não é nada, acaba num instante e você pode fazer tudo normalmente”. Outros falaram da operação de uma forma casual. Foi um passeio no parque. Bem, não pedi a essas pessoas informações sobre a operação, elas apareceram. Depois de um tempo, comecei a acreditar. Mesmo assim, duvidava que uma coisa delicada como um olho pudesse ser tratada mais ou menos como cortar uma unha do pé.
Na minha primeira consulta ao médico, ele examinou o olho e disse que eu precisava ser operado.
Tudo bem”, eu disse, “vamos lá.”
O quê?”, ele perguntou.
Vamos fazer agora. Vamos nessa!”
Espere”, disse ele, “primeiro temos que marcar o hospital. Depois, têm outras preparações. Primeiro, quero te mostrar um filme sobre a operação. Só dura uns 15 minutos.”
A operação?”
Não, o filme.”
O que acontece é que eles tiram todo o cristalino do olho e o substituem por um cristalino artificial. O cristalino é costurado e o olho tem que se adaptar e se recuperar. Depois de três semanas, os pontos são retirados. Não é nenhum passeio no parque e a operação demora muito mais que “uns dois minutos”.
De qualquer forma, quando tudo terminou, a mãe da minha mulher disse que provavelmente estava pensando no procedimento pós-operatório. E o velho? Perguntei a ele: “Quanto tempo levou para que a tua visão ficasse realmente melhor depois da operação no olho?”. “Não tenho certeza de ter operado”, disse ele.
Será que eu estou com esse lábio gordo por ter bebido água na tigela do gato?
Me sinto um pouco melhor esta noite. Seis dias por semana no hipódromo podem desgastar qualquer um. Tente uma vez. Daí, volte pra casa e trabalhe na sua novela.
Ou talvez a morte esteja me mandando alguns sinais?
Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível. E, pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser verdadeiramente descoberto. E todos aqueles que tinham medo de mim ou que me odiavam quando eu estava vivo vão subitamente me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida. Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais. Será suficiente para fazer os deuses vomitarem. A raça humana exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.
Os filhos da puta. É isso aí, me sinto melhor. Maldita raça humana. É isso aí, me sinto melhor.
A noite está refrescando. Talvez eu pague a conta do gás. Lembro que no bairro central sul de L. A. mataram uma mulher chamada Love por não ter pago a conta do gás. A companhia queria desligar o gás. A mulher os expulsou. Não me lembro com o quê. Talvez uma pá. A polícia veio. Não lembro como aconteceu. Acho que ela procurou alguma coisa no avental. Eles atiraram e a mataram.
Tudo bem, tudo bem, vou pagar a conta do gás.
Estou preocupado com minha novela. É sobre um detetive. Mas eu fico colocando-o em situações quase impossíveis e daí tenho que tirá-lo delas. Às vezes, penso numa solução quando estou no hipódromo. Sei que meu editor está curioso. Talvez ele ache que o texto não seja literário. Digo que qualquer coisa que faço é literário, mesmo que eu tente que não seja literário. Ele já deveria confiar em mim. Bem, se ele não quiser o texto, vou despejá-lo em outro lugar. Vai vender tão bem quanto qualquer coisa que escrevi, não porque é melhor, mas porque é tão bom quanto antes e meus leitores malucos estão prontos pra ele.
Olhe, talvez uma boa noite de sono hoje e eu acorde de manhã sem esse lábio grosso. Pode me imaginar me inclinando no guichê, com esse enorme lábio, dizendo: “20 no cavalo 6?”. Claro. Eu sei. O cara não ia nem notar. Minha mulher me perguntou: “O seu lábio não foi sempre assim?”.
Meu Deus.
Você sabia que os gatos dormem 20 das 24 horas do dia? Não se admira que tenham melhor aparência do que eu.
Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

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