domingo, 2 de junho de 2019

Os mortos de Sabalu (trecho)

No dia em que Sabalu quebrou a parede, Ludo confessou-lhe o seu maior pesadelo: matara um homem a tiro e enterrara-o no terraço. O menino escutou-a sem surpresa:
Foi há muito tempo, avó. Nem ele se lembra mais disso.
Ele quem?
O seu morto, o tal Trinitá.
A minha mãe dizia que os mortos sofrem de amnésia. Sofrem mais ainda com a pouca memória dos vivos. Você se lembra dele todos os dias, e isso é bom. Deveria se lembrar dele rindo, dançando. Tem de conversar com o Trinitá como conversa com Fantasma. Conversar sossega os mortos.
Também aprendeste isso com a tua mãe?
Sim. A minha mãe me morreu quando eu era criança. Fiquei abandonado. Converso com ela, mas me faltam as mãos com que me protegia.
Tu ainda és uma criança.
Não consigo avó. Como posso ser criança longe das mãos da minha mãe?
Eu dou-te as minhas.
Ludo não abraçava ninguém há muito tempo. Perdera um pouco a prática. Sabalu teve de lhe erguer os braços. Foi ele mesmo fazendo ninho no colo da velha senhora. Só depois lhe falou na mãe, enfermeira, assassinada por combater o comércio de cadáveres humanos. No hospital onde trabalhava, numa cidade do norte, acontecia desaparecerem cadáveres. Alguns funcionários vendiam os órgãos a quimbandeiros, e assim quintuplicavam o escasso salário. Filomena, a mãe de Sabalu, começara por se insurgir contra os funcionários corruptos, passando, mais tarde, a combater também os quimbandeiros. Começou a ter problemas. Um carro lançou-se sobre ela, à saída do trabalho, quase a atropelando. Assaltaram-lhe a casa cinco vezes. Deixavam feitiços pregados na porta, bilhetes com insultos e ameaças. Nada disso a demoveu. Numa manhã de outubro, no mercado, um homem aproximou-se dela e esfaqueou-a na barriga. Sabalu viu a mãe cair no chão. Ouviu-lhe a voz, num sopro:
Foge, filho!
Filomena viera de São Tomé, grávida, atraída pelos olhos luminosos, os ombros largos, o riso fácil, a voz quente, de um jovem oficial das Forças Armadas Angolanas. O oficial levara-a de Luanda para aquela cidade, vivera com ela oito meses, assistira ao nascimento de Sabalu, partira para uma missão no Sul, que deveria prolongar-se por poucos dias, e nunca mais regressara.
O menino atravessou o mercado, derrubando cestas com frutas, grades de cerveja, pipilantes gaiolas de vime. Um violento alarido de revolta ergueu-se atrás dele. Sabalu só parou diante de casa. Ficou ali, especado, sem saber o que fazer. Então a porta abriu-se e um homem curvo, vestido de preto, pulou sobre ele, como uma ave de rapina. O garoto esquivou-se, rolou no asfalto, levantou-se e, sem olhar para trás, largou de novo a correr.
Um camionista aceitou levá-lo até Luanda. Sabalu disse-lhe a verdade: a mãe morrera e o pai estava desaparecido. Esperava conseguir, na capital, localizar alguém da família. Sabia o nome do pai, Marciano Barroso, que fora, ou era, capitão das Forças Armadas, e que desaparecera numa missão algures no Sul. Sabia ainda que o pai era natural de Luanda. Os avós paternos residiam no Largo do Quinaxixe. Lembrava-se de ouvir a mãe referir o nome. Contara-lhe que ali, naquele largo, crescia uma lagoa de águas escuras, onde morava uma sereia.
O camionista deixou-o no Quinaxixe. Colocou-lhe no bolso um maço de notas: Esse dinheiro deve dar para você alugar um quarto durante uma semana, comer e beber. Espero que entretanto encontre o seu pai.
O menino cirandou por ali, aflito, durante horas e horas. Dirigiu-se primeiro a um polícia obeso, postado diante da porta de um banco:
O senhor conhece o capitão Barroso?
O polícia atirou contra ele uns pequenos olhos cintilantes de cólera:
A circular, vadio, a circular!
Uma quitandeira apiedou-se do menino. Deteve-se um instante a escutá-lo. Chamou outras. Uma delas recordava-se de um velho, Adão Barroso, que vivera ali, no Prédio da Cuca. Falecera há anos.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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