quinta-feira, 6 de junho de 2019

O jogo e a necessidade

Chegamos ao hospital de B... com excelente humor. Eram mais ou menos três e meia. Pedimos que chamassem nossa enfermeira pelo telefone da cabine do porteiro. Ela desceu pouco depois, de touca de enfermeira e blusa branca, e notei certo rubor em sua face, o que me pareceu um bom prenuncio.
Martin tomou rapidamente a palavra e a moça nos anunciou que seu trabalho terminaria às sete horas. Pediu-nos que a esperássemos a essa hora em frente ao hospital.
Você já falou com sua colega? — perguntou Martin, e a moça confirmou.
Seremos duas.
Perfeito — disse Martin —, mas não podemos colocar meu amigo diante de um fato consumado.
Bem — disse a moça —, podemos ir vê-la. Ela está na sala da cirurgia.
Atravessamos devagar o pátio do hospital e perguntei timidamente: — Você ainda está com meu livro?
A enfermeira fez que sim com a cabeça. Estava com ele e ali mesmo no hospital. Senti-me como que aliviado de um peso, e insisti em que ela fosse primeiro buscar o livro. É claro que Martin achou fora de propósito que eu preferisse abertamente um livro a uma mulher que me seria apresentada, mas foi mais forte do que eu.
Devo confessar que tinha sofrido muito durante esses poucos dias em que o livro sobre a cultura etrusca ficara fora do alcance dos meus olhos. Foi preciso um grande esforço para que suportasse isso sem reclamar, mas não queria de maneira alguma estragar o Jogo, esse valor que aprendi a respeitar desde o tempo de minha juventude e ao qual sei subordinar todos os meus interesses e desejos pessoais.
Enquanto reencontrava meu livro com emoção, Martin continuava a conversa com a enfermeira. Tinha ido tão longe que a moça prometera arranjar emprestado para a noite o chalé de um colega, perto do lago Hoter. Não podíamos estar os três mais satisfeitos e seguimos para o pequeno prédio verde onde ficava o serviço de cirurgia.
Bem nesse momento, uma enfermeira acompanhada de um médico atravessava o pátio no sentido inverso. O médico era um homem grande, magro e ridículo, com orelhas de abano, o que me fascinava. Nossa enfermeira me cutucou com o cotovelo e comecei a rir. Quando o casal se afastou, Martin virou-se para mim: — Você tem sorte, meu amigo, você não merece uma garota tão bonita!
Não ousei responder que só tinha olhado o sujeito grande e magro e formulei um elogio. No entanto, não era absolutamente uma prova de hipocrisia de minha parte. Confio mais no gosto de Martin do que no meu, pois sei que o gosto dele se baseia num interesse muito maior do que o meu. Amo em todas as coisas, inclusive no amor, a ordem e a objetividade, e admiro muito mais um conhecedor do que um diletante.
Certas pessoas julgarão talvez hipócrita, da parte do homem divorciado que sou, ao contar justamente uma de suas aventuras (seguramente nada excepcionais) qualificar-se de diletante. E, no entanto, sou um diletante. Podemos dizer que represento aquilo que Martin vive. Algumas vezes me parece que minha vida de polígamo não passa de uma imitação dos outros homens, mas não nego sentir certo prazer com essa imitação. Não posso deixar de reconhecer que existe nesse prazer qualquer coisa de inteiramente livre, gratuito, revogável, que caracteriza uma visita a uma galeria de arte, ou a descoberta de paisagens exóticas e escapa a qualquer imperativo categórico comparável ao que pressinto por trás da vida erótica de Martin. O que me impressiona em Martin é exatamente esse imperativo categórico. Quando ele pronuncia um julgamento sobre uma mulher, parece-me que a Natureza em pessoa, a própria Necessidade se exprimem por sua boca.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

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