sábado, 8 de junho de 2019

Nabokov na prisão

Livros não são prisões. Não são celas, que guardam interpretações fechadas a cadeado ou explicações em algemas. A riqueza de uma narrativa está em seu poder de gerar novas leituras. De arrancar, de dentro do mesmo livro, outros livros. Entre as muitas maneiras de ler Lolita, o lendário romance de Vladimir Nabokov, escolho uma que, em uma reversão inesperada, permite-me ler a alma do próprio Nabokov. Trabalho com a nova e impecável edição da Alfaguara, traduzida por Sergio Flaksman e com posfácio de Martin Amis. A contracapa traz uma eloquente, mas simplista, avaliação da revista norte-americana Vanity Fair: “A única história de amor convincente de nosso século”.
Lançado em 1955 pela pequena editora francesa Olympia, depois de receber a recusa de cinco grandes editoras norte-americanas sob a alegação de “pornografia”, o mais importante romance de Nabokov não pode ser reduzido, como fez Vanity Fair, a uma história de amor, ainda que “a única convincente” do século XX. Há muito mais em jogo. Reli muitas vezes Lolita e, a cada releitura, me deparo com um livro que fui incapaz de ler. A paixão louca de Humbert Humbert, um intelectual de meia-idade, pela provocante Dolores Haze, uma menina de apenas 12 anos, é muito mais que a história de uma obsessão erótica.
Não preciso dizer que a pedofilia é um crime hediondo, que merece o mais duro dos castigos. Ainda assim, a sinuosa Dolores nos permite pensar nos jogos sexuais das crianças e nos labirintos que escondem seus erráticos impulsos eróticos. Embora não devam ser molestadas, crianças também não devem ser beatificadas. Não são demônios, mas também não são anjos. Talvez Nabokov pensasse nisso quando disse que Lolita era sua “bomba-relógio”. Citasse, ainda, a lendária sentença de Freud, pronunciada em sua chegada a Nova York: “Eu lhes trago a peste”. Não porque Dolores seja uma encarnação precoce do diabo, mas porque ela é, ao mesmo tempo, um diabo e um anjo – e a peste é o abismo que os separa, mas une também. Humbert é capturado não por uma imagem doce e angelical, tampouco por uma menina nefasta e perversa, mas por um ser ambíguo. A indefinição seduz mais que a definição. A seda esvoaçante que encobre uma silhueta invisível é mais arrebatadora que um corpo nu.
Também Nabokov, como o seu Humbert, estava em plena meia-idade – tinha 52 anos – quando começou a escrever Lolita. Também ele fazia sua travessia existencial, assim como Lolita ainda é uma criança inocente, mas já é uma adolescente fogosa. O pior é que não podemos dizer, para chegar ao consolo de uma síntese, que ela seja as duas coisas. Não é isso: não há soma no que Lolita é – não há soma na existência de ninguém, mas, sim, subtração. A Lolita perversa subtrai algo insuportável da Lolita inocente. O contrário também funciona: a Lolita angelical rouba da menina perversa algo que a torna mais fascinante ainda. Nesse desvão, entre duas Lolitas que se puxam e se anulam, surge uma Lolita que parece não existir, que não é provável nem coerente, e que por isso mesmo deixa Humbert louco. E ainda: que só por isso tornou-se um dos mais fortes personagens da literatura do século XX.
Penso em Nabokov. Nascido em São Petersburgo em 1899, começou a escrever na Rússia soviética. Depois de desistir da linhagem de Tolstói e Dostoiévski, escreveu, usando pela primeira vez o inglês, A verdadeira vida de Sebastian Knight, livro em que, como um cirurgião que se auto-operasse, abriu em si mesmo um rasgão interior, que soube transformar em uma duplicação. O tema do duplo já aparecera em outro de seus grandes livros, o fabuloso Desespero, de todos os seus romances o meu preferido, escrito ainda em russo e publicado em 1936. Começou seu primeiro romance inglês em 1938, logo depois de abandonar a Rússia e fixar-se em Paris. Narrada por seu irmão, que se apresenta apenas como V., a vida verdadeira do escritor Sebastian Knight é igualmente falsa – mistura que transforma a duplicação em decapitação.
Com Lolita, o duplo não se desdobra para fora – não é como o outro em quem, em Desespero, o protagonista Hermann Hermann um dia se vê. Em Lolita o duplo se verga para dentro – uma mesma menina, Lolita, é e não é muitas coisas. A cisão não se parece com uma assombração ou uma ameaça; é, ao contrário, uma contrição, espécie de arrependimento no qual duas metades desgarradas enfim se encaram. A alma rasgada de Lolita, muito mais que seu corpo de ninfeta, é o que atrai Humbert. Uma alma descosida, cujas duas metades não se encaixam. Muito mais que sua pele delicada ou suas formas nascentes, é esse vão que a menina porta no peito que arrebata Humbert.
Creio que poucas vezes um escritor falou, por vias discretas, mas de modo tão contundente, a respeito da condição ficcional. Não sei se, em Lolita, Nabokov fala “de literatura” – falamos muito “de literatura” e frequentemente quase nada dizemos. Falou, talvez, daquele ponto secreto e autônomo – aquele enigma – de que a literatura trata. Livros de suspense ou de detetive lidam com o mistério, mas o enigma é algo mais assustador. O enigma não suporta explicação – ele apenas nos leva a balbuciar algumas palavras, e todas elas falham. O enigma não tem conteúdo, ele é uma caixa vazia dentro da qual colocamos nossas dúvidas. Que outra coisa é a ficção? Em quem mais pensar senão em Lolita?
Agora, relendo o romance, ocorre-me que Dolores talvez não seja só uma menina, mas uma pergunta escondida no corpo de uma menina. A mesma pergunta alucinante que leva Humbert a persegui-la, a se submeter a seus caprichos e a dela sofrer. Grandes escritores, como Vladimir Nabokov, escrevem para preencher uma caixa vazia, a que nenhum conteúdo corresponde. São, todos eles, incorrigíveis e fracassados perseguidores. Trabalham em estado de aflição, sem conseguir domar seu desejo, empurrados por forças incontroláveis. Escritores são prisioneiros. Livros não são prisões, mas escritores vivem em prisão perpétua, ou não chegariam a escrever.
José Castello, in Sábados inquietos

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