Livros
não são prisões. Não são celas, que guardam interpretações
fechadas a cadeado ou explicações em algemas. A riqueza de uma
narrativa está em seu poder de gerar novas leituras. De arrancar, de
dentro do mesmo livro, outros livros. Entre as muitas maneiras de ler
Lolita, o lendário romance de Vladimir Nabokov, escolho uma
que, em uma reversão inesperada, permite-me ler a alma do próprio
Nabokov. Trabalho com a nova e impecável edição da Alfaguara,
traduzida por Sergio Flaksman e com posfácio de Martin Amis. A
contracapa traz uma eloquente, mas simplista, avaliação da revista
norte-americana Vanity Fair: “A única história de amor
convincente de nosso século”.
Lançado
em 1955 pela pequena editora francesa Olympia, depois de receber a
recusa de cinco grandes editoras norte-americanas sob a alegação de
“pornografia”, o mais importante romance de Nabokov não pode ser
reduzido, como fez Vanity Fair, a uma história de amor, ainda
que “a única convincente” do século XX. Há muito mais em jogo.
Reli muitas vezes Lolita e, a cada releitura, me deparo com um
livro que fui incapaz de ler. A paixão louca de Humbert Humbert, um
intelectual de meia-idade, pela provocante Dolores Haze, uma menina
de apenas 12 anos, é muito mais que a história de uma obsessão
erótica.
Não
preciso dizer que a pedofilia é um crime hediondo, que merece o mais
duro dos castigos. Ainda assim, a sinuosa Dolores nos permite pensar
nos jogos sexuais das crianças e nos labirintos que escondem seus
erráticos impulsos eróticos. Embora não devam ser molestadas,
crianças também não devem ser beatificadas. Não são demônios,
mas também não são anjos. Talvez Nabokov pensasse nisso quando
disse que Lolita era sua “bomba-relógio”. Citasse, ainda, a
lendária sentença de Freud, pronunciada em sua chegada a Nova York:
“Eu lhes trago a peste”. Não porque Dolores seja uma encarnação
precoce do diabo, mas porque ela é, ao mesmo tempo, um diabo e um
anjo – e a peste é o abismo que os separa, mas une também.
Humbert é capturado não por uma imagem doce e angelical, tampouco
por uma menina nefasta e perversa, mas por um ser ambíguo. A
indefinição seduz mais que a definição. A seda esvoaçante que
encobre uma silhueta invisível é mais arrebatadora que um corpo nu.
Também
Nabokov, como o seu Humbert, estava em plena meia-idade – tinha 52
anos – quando começou a escrever Lolita. Também ele fazia
sua travessia existencial, assim como Lolita ainda é uma criança
inocente, mas já é uma adolescente fogosa. O pior é que não
podemos dizer, para chegar ao consolo de uma síntese, que ela seja
as duas coisas. Não é isso: não há soma no que Lolita é –
não há soma na existência de ninguém, mas, sim, subtração. A
Lolita perversa subtrai algo insuportável da Lolita inocente. O
contrário também funciona: a Lolita angelical rouba da menina
perversa algo que a torna mais fascinante ainda. Nesse desvão, entre
duas Lolitas que se puxam e se anulam, surge uma Lolita que parece
não existir, que não é provável nem coerente, e que por isso
mesmo deixa Humbert louco. E ainda: que só por isso tornou-se um dos
mais fortes personagens da literatura do século XX.
Penso
em Nabokov. Nascido em São Petersburgo em 1899, começou a escrever
na Rússia soviética. Depois de desistir da linhagem de Tolstói e
Dostoiévski, escreveu, usando pela primeira vez o inglês, A
verdadeira vida de Sebastian Knight, livro em que, como um
cirurgião que se auto-operasse, abriu em si mesmo um rasgão
interior, que soube transformar em uma duplicação. O tema do duplo
já aparecera em outro de seus grandes livros, o fabuloso Desespero,
de todos os seus romances o meu preferido, escrito ainda em russo e
publicado em 1936. Começou seu primeiro romance inglês em 1938,
logo depois de abandonar a Rússia e fixar-se em Paris. Narrada por
seu irmão, que se apresenta apenas como V., a vida verdadeira do
escritor Sebastian Knight é igualmente falsa – mistura que
transforma a duplicação em decapitação.
Com
Lolita, o duplo não se desdobra para fora – não é como o
outro em quem, em Desespero, o protagonista Hermann Hermann um
dia se vê. Em Lolita o duplo se verga para dentro – uma mesma
menina, Lolita, é e não é muitas coisas. A cisão não se parece
com uma assombração ou uma ameaça; é, ao contrário, uma
contrição, espécie de arrependimento no qual duas metades
desgarradas enfim se encaram. A alma rasgada de Lolita, muito mais
que seu corpo de ninfeta, é o que atrai Humbert. Uma alma descosida,
cujas duas metades não se encaixam. Muito mais que sua pele delicada
ou suas formas nascentes, é esse vão que a menina porta no peito
que arrebata Humbert.
Creio
que poucas vezes um escritor falou, por vias discretas, mas de modo
tão contundente, a respeito da condição ficcional. Não sei se, em
Lolita, Nabokov fala “de literatura” – falamos muito “de
literatura” e frequentemente quase nada dizemos. Falou, talvez,
daquele ponto secreto e autônomo – aquele enigma – de que a
literatura trata. Livros de suspense ou de detetive lidam com o
mistério, mas o enigma é algo mais assustador. O enigma não
suporta explicação – ele apenas nos leva a balbuciar algumas
palavras, e todas elas falham. O enigma não tem conteúdo, ele é
uma caixa vazia dentro da qual colocamos nossas dúvidas. Que outra
coisa é a ficção? Em quem mais pensar senão em Lolita?
Agora,
relendo o romance, ocorre-me que Dolores talvez não seja só uma
menina, mas uma pergunta escondida no corpo de uma menina. A mesma
pergunta alucinante que leva Humbert a persegui-la, a se submeter a
seus caprichos e a dela sofrer. Grandes escritores, como Vladimir
Nabokov, escrevem para preencher uma caixa vazia, a que nenhum
conteúdo corresponde. São, todos eles, incorrigíveis e fracassados
perseguidores. Trabalham em estado de aflição, sem conseguir domar
seu desejo, empurrados por forças incontroláveis. Escritores são
prisioneiros. Livros não são prisões, mas escritores vivem em
prisão perpétua, ou não chegariam a escrever.
José
Castello, in Sábados inquietos
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