Quando
Francisca fez amizade com Winifred, e passou a frequentar a casa com
Levindo, havia momentos de conversa em que Nando via, depois, com
horror, que discutira com naturalidade heresias de chocar mesmo
pessoas apenas respeitadoras da religião, ou teses de violências
contrárias por completo ao Sermão da Montanha. Como naquela noite
em que Levindo parecia a princípio imune a todas as provocações,
alheado da conversa, mãos dadas com Francisca. Tanto assim que
Leslie, talvez para sacudir o tédio reinante, veio com sua estranha
história do mundo criado e governado pela Virgem.
— Tenho
uma novidade para você, Nando — disse. — Sabe que também do
ponto de vista negativo os holandeses de Nassau teriam deixado sua
marca no Brasil? Há sinais de uma curiosa heresia que eles
provocaram em Pernambuco e na Bahia. Uma das razões do
encarniçamento do Santo Ofício sobre o padre Vieira foi talvez essa
heresia, fruto do desespero de portugueses e brasileiros dominados
pelos holandeses.
— Que
heresia era esta? — disse Nando.
— Desanimados
de rezar a Deus, que não parecia socorrê-los, deram uma espécie de
golpe de Estado e puseram em seu lugar a Virgem Maria.
— Nunca
ouvi falar em tamanho disparate — disse Nando.
— Pois
teriam até construído capelas em que Deus, o trânsfuga que se
passara para o lado dos holandeses protestantes, fora finalmente
destronado por Maria que em todo o caso jamais tinha perdoado o
sacrifício do filho na Cruz. Jesus devia ter sido salvo, com Isaac,
e no entanto Deus o deixou morrer.
— Nunca,
mas nunca ouvi falar em tamanha extravagância — disse Nando.
— Pois
olhe — disse Leslie —, há uns trechos de Vieira bem estranhos,
que parecem confirmar os indícios da heresia. Vou pegar aqui o livro
dos Sermões e...
— Ora,
Leslie — disse Nando —, que maluquice! Um cristianismo mariano,
sem o Cristo. Um marianismo, em suma. A civilização ocidental e
mariana...
— Espere
— disse Leslie —, o livro de Vieira está...
Levindo
desafundou da poltrona, o que fez Leslie parar no meio da frase.
Levindo perguntou a Winifred:
— O
Nassau de que eles estão falando é o tal príncipe holandês que
andou por aqui?
— Ele
mesmo — disse Winifred.
— E
o Nando e o Leslie estão discutindo os tempos dele e a questão de
saber se a Virgem Maria era adorada assim ou assada?
Winifred
riu.
— É
isto. É o que você está ouvindo.
Levindo
bateu na perna, rindo a plenos pulmões.
— Não
é possível! O máximo! Me dá uma bebida dessas, dona Winifred. Vou
encher a cara.
— Você
não diz nada e depois reclama da conversa dos outros? — disse
Francisca.
— Francisca,
minha querida — disse Levindo —, eu sei que você não gosta dos
meus maus modos. Mas eu estava em silêncio para ouvir os mestres.
Brasil Holandês e Virgem Maria. Deus me proteja!
Levindo
riu, aceitou o copo de uísque que Winifred lhe entregava e afundou
de novo na poltrona. Leslie estava sorrindo mas o tom era ácido.
— A
gente pode ser revolucionário e conhecer história e religião —
disse Leslie. — E, por falar em revolução. Vejamos se uma
invocação da Virgem lhe diz alguma coisa. Nossa Senhora do O, por
exemplo.
— Já
vi que está falando no Engenho, não? — disse Levindo. — O que é
que tem a Nossa Senhora do O?
— O
que tem é que existe ali uma situação de grande miséria e de
quase revolução. Vejo sempre seu amigo Januário instruindo e
ajudando os camponeses, mas você nunca encontrei lá.
— Hum...
Não é tanto assim. Mas eu já disse ao Januário que aquele Engenho
está bichado. No máximo a gente socorre lá uma ou outra pessoa mas
os camponeses estão muito massacrados e temerosos.
— Mas
que diabo — disse Winifred —, não custa nada auxiliar gente que
está sofrendo e lutando.
— Atrasa,
atrasa — disse Levindo. — O ruim na atitude de vocês
estrangeiros é que gente faminta e maltratada faz mal a vocês.
Então vocês ajudam os miseráveis que encontram e que perturbam a
digestão de vocês. Eu não quero a miséria extinta no Senhora do
O, do B ou do C. Quero acabar com ela toda, revoltar todo o mundo.
— Só
há mesmo estudantes e ex-estudantes, como Levindo, pensando em
alterar as coisas erradas do país — disse Leslie. — Crianças
brincando de revolução. Estão fazendo ao seu jeito aquilo que os
pais deviam fazer. A coisa não falha: se um país tem estudantes
politicamente ativos é porque os mais velhos não fazem o que devem.
Os jovens agitam, em vez de estudar. Depois envelhecem ignorantes
como os pais. Por isso é que o Brasil é uma eterna república de
estudantes.
— Quem
dera que fosse, Leslie — disse Levindo. — Tem muita gente que
acaba o curso e enterra o time. O que é preciso é gente nova,
brasileiro novo, fazendo o Brasil.
— Só
brasileiro — disse Leslie —, estrangeiro não pode nem ajudar,
não é?
— Ajudar
pode. Estrangeiro isolado, assim feito você e sua mulher.
Leslie
agradeceu com a cabeça, irônico.
— Mas
vou lhe dizer uma coisa — disse Levindo. — Juro que prefiro uma
guerra externa ao auxílio externo. Tenho vontade de vomitar quando o
Nordeste recebe caixas de comida e de remédios. Eu dizia ainda ontem
ao Januário. Se houver uma outra seca e vierem víveres de fora
palavra que eu enveneno o que puder.
— Em
vez de veneno pegue em armas, então — disse Leslie.
— Me
ajude, padre Nando — disse Levindo. — O que eu quero dizer ao
Leslie é que precisamos criar dentro do brasileiro a ajuda ao
Brasil. Temos de fabricar os mitos. O pai de Francisca, por exemplo,
quer que a gente vá passar a lua de mel à beira do Sena, do Tibre,
do Danúbio, sei lá. Eu já disse a ele que eu e Francisca vamos
passar a lua de mel à beira do Xingu.
— Você
se interessa pelos índios? — disse Nando.
— Não
— disse Levindo —, não me interesso pelo índio assim feito
você, isto não. Nada de missões e parques indígenas. Só nos
países onde os homens vivem direito é que jardins zoológicos podem
funcionar. O índio por enquanto que se defenda.
— Mas
o que é que interessa a você no Xingu?
— Os
cafundós do Brasil — disse Levindo. — Eu estava lendo nos
jornais que o Conselho Nacional de Geografia já assinalou
matematicamente o Centro Geográfico do Brasil. É lá pelo Xingu. A
Expedição que devia ir por terra a esse Centro foi adiada
indefinidamente, como tudo no Brasil. Por falta de pessoal, de
dinheiro, sei lá. Isto, por exemplo, eu gostava de fazer. Assinalar
na terra o lugar do coração do país. E trazer terra do Centro para
cá, para o Sindicato de Palmares, por exemplo. Para fincar a
bandeira diante do Sindicato.
De
volta ao mosteiro, e tentando em vão conciliar o sono, Nando
procurou as razões de sua inquietação na violência enunciada por
Levindo. Mas não eram os argumentos de feroz alegria que o
perturbavam e o faziam rolar no leito: era por trás dele a voz de
Leslie com seu sotaque protestante, era aquela inominável história
do mundo não mais sob a doce intercessão de Maria mas criado e
governado pela mulher.
Antonio
Callado, in Quarup
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