1
Um
dia, ainda vai ser conhecida a verdadeira natureza das minhas
relações com o professor Propp. Até hoje não sei como tantas
intrigas puderam se tecer em torno de alguém com uma biografia tão
exata quanto ele, figura dedicada, de corpo e alma, à ciência, para
ele, a rabínico-cossaco-prussiana disciplina do pensamento e da vida
se organizando em esquemas.
Propp
escrevia seco, mas muito bem. Seu principal romance, porém, que
merda!, ainda não saiu à luz. Esse escafandrista das profundezas
humanas, discípulo direto de Freud, que discutiu, como ele invoca,
com Reich, Férenczi e Jung, ele deixou uma história que, se ainda
houver um resquício de luz e amor na humanidade, um dia, vai ser
publicada.
É
a Morfologia do Conto Maravilhoso, admito, um nome um pouco
abstrato para uma obra de ficção. O singular no caso foi o uso que
ele fez desse seu romance no tratamento de gente como eu, como nós,
nós, que frequentamos a caverna de Propp, e perguntamos:
— Tem
jeito?
E
ele diz:
— Diga
A.
E
nós todos dizemos, ah, hoje não vai dar.
Com
o perdão das senhoras presentes, me estendo um pouco mais sobre esse
romance que viria a ter um papel tão, tão, tão, como direi?, em
minha vida, por puro medo de que essa história nunca venha a ser
publicada, privando a espécie de uma de suas obras mais, mais e
mais, daquelas que dá pra segurar na mão e brandir para as estrelas
dizendo: vocês não perdem por esperar.
Nada
poderia ser mais estranho para o leitor habitual de fábulas, ávido
por emoções fáceis, detalhes picantes ou registros agudos do
cotidiano, arquiteturas redondas e enredos envolventes.
Não
Propp.
Seu
romance é abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os
romances, seus personagens são todos os personagens possíveis.
Como
isso foi possível, só o gênio do professor explica, e o
gênio é inexplicável, como nós todos, seres gasosos dos pantanais
de Canópus, sabemos.
O
fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem
UMA SÓ HISTÓRIA. E aplicou-se a descobrir a cadeia de constantes, a
lei lógica e matemática que rege a geração dos enredos, o
vertiginoso movimento das constelações que constituem uma
intriga.
Todo
entrecho, para ele, reduz-se à combinação de algumas funções
básicas (trinta e uma, se não me engano: um dia, perguntei por que
um número tão quebrado, por que não trinta ou quarenta, e ele me
respondeu com uma frase latina, saiam da frente, Virgílios e
Cíceros, algo assim como “nummerus impar deis placet”, aos
deuses agradam os números ímpares, e rematou dizendo que, por
mais que a gente tentasse reduzir a realidade e a vida aos números
pares, elas sempre seriam ímpares, os pares não passando de uma
mera fantasia humana, o médico e o monstro, o casal perfeito, Sansão
e Dalila).
Em
nosso último encontro, fantasiava uma psicanálise do ímpar.
— Ménage
à trois, professor?
Claro,
o romance de Propp não era, apenas, mais uma dessas obras
destinadas, apenas, a proporcionar prazer a um leitor
eventual.
Propp
não. Ele era médico. Queria curar. Quer dizer, dizer NÃO ao
real, que quer a doença. Não à inexorável lógica última
e suprema de todas as coisas e de todos os processos, aquela coisa
que quer que a pedra caia quando jogada pra cima, o que quer que seja
que quer que as flores nasçam na primavera e no inverno a gente
tenha que usar cinco (ímpar!) roupas sobre o peito.
De
Propp, fica esta ideia, tenho certeza. A saúde através daquilo que
ele chamava Funções dos Personagens, e suas cambiáveis, mas
previsíveis combinações.
Não
ficava perguntando se você já tinha alguma vez tido a vontade de
chupar a buceta de sua mãe para voltar ao útero, e, mamando, acabar
com tudo isso, de uma vez por todas. Ou se você tinha fantasiado ver
o saco do seu pai servido num prato ao molho pardo.
Grande
diretor de cena, em um minuto, você já estava passando da Função
1 para a 4, da 3 para a 7, da 6 voltando à 2, uma máscara atrás de
outra máscara atrás de.
Cada
uma das Funções, até 31, tinha um nome e uma definição precisas
(uns dois anos para decorá-las todas, no rigor da sua ordem:
enquanto isso, quem vai ter tempo para ter problemas psíquicos).?)
O
sucesso obedecia ao seguinte esquema, este é o esquema do fracasso
do herói. A felicidade, lembro, seguia o esquema, personagem sai de
casa, enfrenta os perigos do mundo, personagem volta pra casa.
Nesse
meio-tempo, eu, você, Hércules, Ulisses, Kennedy, Alice, Fausto,
Adão, Guilherme Tell, Robin Hood, Frankenstein, o herói, enfim,
passava, a gente passava por certas peripécias básicas, sempre as
mesmas, só mudava a ordem.
Era
confortador. E era apavorante. Gostoso saber que você pertencia a
uma lógica maior que você, um fundo contra o qual tua figura se
projetava. Mas eu me cagava de medo de saber que viver, então, era
só isso, e assim, e não de outra forma.
Preparava,
pouco antes do seu trágico desaparecimento, uma retórica do desejo,
que o tempo não permitiu acabar. Da “Retórica do Desejo”,
guardo ainda algumas notas, pepitas de ouro recolhidas nas enxurradas
da vida.
2
Acreditem
ou não, era nele e seus esquemas que eu pensava, deitado lá dentro
daquele quarto escuro, ouvindo aquela voz, aquela voz única, no
fundo, a única que eu ouvia desde que tinha chegado naquela festa,
festa, aliás, que não houve, ou não tinha havido, ou,
enfim, tinha caído num número ímpar qualquer, como o professor
Propp tinha previsto. Ou qualquer coisa assim.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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