Acho
que sabedoria é saber sofrer pelas razões certas. Quem não sofre,
quando há razões para isso, está doente. Se uma pessoa querida
morre e o coração não sangra, se um golpe duro da vida atinge a
quem se ama e os olhos não choram, se uma desgraça cai sobre o povo
e a alma não fica triste, se o fogo consome as florestas e o corpo
não queima também, é porque algo está errado com a gente.
Quem
é feliz e nunca sofre, padece de uma grave enfermidade e precisa ser
tratada a fim de aprender a sofrer. Sofrer pelas razões certas
significa que estamos em contato com a realidade, que o corpo e a
alma sentem a tristeza das perdas e que existe em nós o poder do
amor. Só não sofrem, quando para isso há razões, aqueles que
perderam a capacidade de amar. Toda experiência de amor traz,
encolhida no seu ventre, à espera, a possibilidade de sofrer. Assim,
a receita para não sofrer é muito simples: basta matar o amor.
Mas
que enorme seria a perda se isso acontecesse! Porque é o sofrimento
que nos faz pensar. Pensamos ou para encontrar formas de eliminar o
sofrimento, quando isso é possível, ou para dar um sentido ao
sofrimento, quando ele não pode ser evitado. O pensamento, assim,
filho da dor, está a serviço da alegria. Todas as belas conquistas
do espírito humano, da poesia à ciência, nasceram assim.
Mas
há outros sofrimentos que não nascem de perdas reais. A felicidade
pode ser destruída por uma doença que mora em nossos olhos. O que é
ilustrada por esta estorieta que gosto de contar:
***
“Um
homem, felizardo, encontrou uma garrafa onde morava um gênio.
Libertado de sua prisão, o gênio lhe disse:
-
Tenho o poder de torná-lo feliz. Atenderei a todos os seus pedidos,
sem nenhum limite!
Tomado
por uma onda de felicidade, o homem começou a imaginar todas aquelas
coisas com que sempre sonhara e nunca imaginara poder ter. coisas que
o tornariam feliz para sempre! E os seus olhos brilhavam ao
contemplar os objetos dos seus desejos: casas em lugares
paradisíacos, viagens por países longínquos, banquetes com comidas
exóticas, carros, iates, aviões, lindas mulheres que o amariam com
amor terno e fiel, um corpo eternamente jovem, belo e potente… Ah!,
o que ele imaginava estava além de tudo o que sonhara, e agora seus
olhos deslumbrados se deleitavam nos objetos que o tornariam feliz.
Estava pronto a transformar seus sonhos em realidade e felicidade.
-
Vou dizer o que desejo – disse ele ao gênio.
-
Há apenas um pequeno detalhe, insignificante, que é preciso
esclarecer – o gênio acrescentou.
-
Pois diga – replicou o homem.
-
É que tudo o que você tiver, seu inimigo terá em dobro…
Ao
ouvir essas palavras, uma perversa metamorfose aconteceu com os seus
olhos. Seu deleite tranquilos nos objetos do seu desejo se
transformou num movimento aflito entre o que o gênio lhe daria –
até aquele momento muito mais do que tudo com que jamais sonhara,
mais que suficiente para a sua felicidade – e aquilo que seria dado
ao seu pior inimigo. E, quando seus olhos o contemplavam e o que ele
teria, como ele se sentia pobre e desgraçado! A visão da felicidade
do outro estragara, para sempre, a sua própria felicidade.
-
Já sei o que quero pedir – disse ele finalmente ao gênio.
-
Pois faça o seu pedido! -, o gênio replicou.
-
Me fure um olho!”
Rubem
Alves, in A eternidade numa hora
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