sexta-feira, 21 de junho de 2019

A noite anterior

Como retornar à noite anterior a um nascimento? Será possível apagar uma vida para, com o coração vazio, seguir em frente? A resposta é não e quem a grita é o poeta e crítico Walmir Ayala, quando, no ano de 1990, vésperas de sua morte, escreveu A viagem, emocionante livro de poemas que deixou inédito. Ele é lançado, agora e enfim, pela editora Bem-Te-Vi, de Vivi Nabuco, com edição de Sebastião Lacerda.
Poeta da terceira geração do Modernismo, Ayala é, muito mais que isso, um poeta inconfundível, que transforma a poesia em uma fracassada, mas bela, indagação sobre o oculto. Escreve: “Assim no escuro te contemplo/ absoluto no que não te mostras”. Poemas escritos em memória, mas também na esperança da volta de um surfista morto, A viagem é um livro que, afora os possíveis rastos pessoais, interroga a grande escuridão – página negra de tão branca – que antecede a própria poesia.
Ayala se oferece como um repórter da morte. “Sentado, frontal, simétrico,/ sou teu escriba”, admite sem contorcer as palavras. “Agora estou sozinho, sou apenas um retrato terroso,/ E tu navegas para a glória.” O poeta (difícil missão) é aquele que encara o que já não está ali. Mordomo do vazio, ele zela pela presença de um ausente. De nada lhe servem os consolos humanos: “Alguém me disse: ‘tu não o perdeste, agora é que ele é teu”. Não aceitou a metáfora, repeliu-a. Palavras são lençóis que só com grande esforço encobrem o corpo da vida.
O poeta-arqueólogo, porém, se põe a escavar os ossos da língua. Escreve Ayala: “E continuo cavando, cavando com as unhas maceradas/ como se o mistério fosse mensurável”. Não só o mistério não é mensurável, como não é pronunciável. Melhor dizer: não mistério, mas enigma. Isso, porém, em vez de impedir o trabalho da poesia, lhe abre caminho.
Eu o sinto agora como se fosse meu filho”, diz ainda. Quem morreu? Um filho, um ser amado, um ideal? A grande colcha das metáforas encobre a imagem do surfista morto. Torna-a trêmula, esmaecida, uma sombra em que qualquer fantasma se acomoda. Qualquer, mas não qualquer um: sem um laço (de paixão), ele não toma corpo. Anatomia invisível, que não se deixa ler – susto. O poeta diz: “Há um mapa a ser jamais interpretado”. Contudo, é só por esse “jamais” que a poesia se escreve. Poesia: lugar do jamais, posto do nunca.
Mas quem é o menino morto? O próprio poeta, tonto, se pergunta: “Quem é esse menino no retrato claro/ da sala vazia? Tem um ar distante”. A questão já não é o corpo que apodrece ou, até mesmo, se ele de fato existiu. Tampouco a personalidade que o encarnou. Trata-se de outra coisa: da imagem (memória) que o substitui. “– Quem era o menino? – Que importa. Hoje é apenas um retrato, um triste desenho do vento.” Sua alma está em outro lugar: não no retrato fosco, mas no poema.
Eu o sinto agora como se fosse meu filho”, escreve o poeta, alçando-se, repentinamente, ao orgulho da paternidade. Sim: de onde mais escorrem os versos senão desse falso pai verdadeiro? De onde mais alguma coisa fala senão através desses versos? “Eu aqui tenho que compor com palavras a sombra/ desse transe.” Palavras ocupam o lugar do morto. Duras como uma lápide ou uma prancha de surfista, elas o sustentam. A própria ideia, “surfista”, é só uma palavra. O que ela realmente quer dizer?
À entrada, há, sim, um nome: “Em memória de Gustavo Adolfo Cox (1970-1989)”. Dezenove anos, e morto. Meu primeiro impulso é pesquisar essa existência. Algo (a própria poesia, que não precisa do mundo para ser), porém, me detém. Desconheço detalhes da vida de Ayala; algo me diz que é melhor persistir na ignorância. Deixar que a poesia tome o lugar do passado, em vez de reduzi-la a registro (História) ou a ressurreição (Religião). Que ela seja o que é, e isso me basta. Deve bastar.
Nenhuma ignorância – a cegueira em que, de propósito, persevero – tira, contudo, a paixão dos versos. Mapa indecifrável, eles me arrastam por vãos estreitos, ali onde uma legião de leitores ronda à espera de alimento. “Por ti farei da dor uma tensa poesia”, o poeta escreve, legitimando esse sentimento. E ele me ampara e me dá de comer.
A morte, nos diz, despenca um dia “como um anjo de asas despenadas”. Para que interrogá-la? Como acessar a Verdade da morte? Os médicos apresentam atestados, os jornalistas, versões, as testemunhas, seu choro. Mas a poesia está fora de tudo isso – e, no entanto, carrega tudo isso dentro de si. O surfista morto de Saquarema transformou-se em ar: “Paro um momento e te respiro”. A poesia, como a morte, tem esse poder: sem que possamos localizá-la, está por toda parte.
A poesia de Ayala é um bordado sobre a morte. O poeta escreve: “Bordo em teu peito um coração de madressilvas,/ desenho em teu lábio o carmim da paixão”. Ele precisa dessa máscara que encobre, mas realça, a ausência amada. Diz mais: “Assim no escuro te contemplo,/ absoluto no que não te mostras”. O poeta não está cego: o poeta (todo poeta) é cego. Para além dele, inacessível, a vida escorre. Diz: “Éramos tão felizes que só viver bastava”.
Poetas habitam uma noite anterior. Vivem antes. Não para reconstruir o que já não está ali, mas para provar daquele tempo que antecede o real, espécie de poço profundo do qual não só o poema, mas toda a vida emerge. Escreve Ayala: “Olho a noite que me abraça e nem precisa de imagem para ser sentida”. Um tempo em que o corpo, suporte da vida, frágil prancha, ainda não a aguenta. Uma origem.
Tudo o que ele tem (página em branco) é um quarto vazio. “Tento mudar de posição os móveis, a cama/ onde dormias parece um tronco/ levado pelas águas.” Fazer poesia é matar? Não deixa de ser: a metáfora, porque deslocada e torta, é sempre assassina. Mas é a beleza que ela descerra com seu gesto violento. É o osso trêmulo da vida que ela, ocupando seu lugar, nos permite ver.
Aceito, enfim, a frieza da Verdade: no ano de 1989, o jovem Gustavo Adolfo Cox cometeu suicídio em Saquarema. Tinha 19 anos e era filho de criação do poeta Walmir Ayala. Não nego que a informação empresta ainda mais dor aos poemas. O livro se torna um trabalho de luto. Mas será que isso acrescenta mais poesia à poesia?
José Castello, in Sábados inquietos

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