sábado, 25 de maio de 2019

Ignoramus

Os humanos procuram entender o universo pelo menos desde a Revolução Cognitiva. Nossos ancestrais dedicaram muito tempo e esforço a tentar descobrir as regras que governam o mundo natural. Mas a ciência moderna difere de todas as tradições de conhecimento anteriores em três aspectos cruciais:

a. A disposição para admitir ignorância: a ciência moderna se baseia na sentença latina ignoramus – “nós não sabemos”. Presume que não sabemos tudo. O que é ainda mais crucial, aceita que as coisas que achamos que sabemos podem se mostrar equivocadas à medida que adquirimos mais conhecimento. Nenhum conceito, ideia ou teoria é sagrado e inquestionável.
b. O lugar central da observação e da matemática: tendo admitido a ignorância, a ciência moderna almeja obter novos conhecimentos e o faz reunindo observações e então usando ferramentas matemáticas para relacionar essas observações em teorias abrangentes.
c. A aquisição de novas capacidades: a ciência moderna não se contenta em criar teorias. Usa essas teorias para adquirir novas capacidades e, em particular, para desenvolver novas tecnologias.

A Revolução Científica não foi uma revolução do conhecimento. Foi, acima de tudo, uma revolução da ignorância. A grande descoberta que deu início à Revolução Científica foi a descoberta de que os humanos não têm as respostas para suas perguntas mais importantes.
Tradições de conhecimento pré-modernas como o islamismo, o cristianismo, o budismo e o confucionismo afirmavam que tudo que é importante saber a respeito do mundo já era conhecido. Os grandes deuses, ou o Deus todo-poderoso, ou as pessoas sábias do passado detinham uma sabedoria universal, que revelavam a nós por meio de escrituras e tradições orais. Os meros mortais adquiriam conhecimento ao estudar tais tradições e textos antigos e entendê-los da maneira adequada. Era inconcebível que a Bíblia, o Corão ou os Vedas estivessem omitindo um segredo crucial do universo – um segredo que ainda pode vir a ser descoberto por nós, criaturas de carne e osso.
As antigas tradições de conhecimento só admitiam dois tipos de ignorância. Em primeiro lugar, um indivíduo podia ignorar algo importante. Para obter o conhecimento necessário, tudo que ele precisava fazer era perguntar a alguém mais sábio. Não havia necessidade de descobrir algo que qualquer pessoa já não soubesse. Por exemplo, se um camponês em alguma aldeia inglesa do século XIII quisesse saber como a raça humana se originou, ele presumia que a tradição cristã tinha a resposta definitiva. Tudo que precisava fazer era perguntar ao padre local.
Em segundo lugar, uma tradição inteira podia ignorar coisas sem importância. Por definição, o que quer que os grandes deuses ou os sábios do passado não tenham se dado ao trabalho de nos contar não era importante. Por exemplo, se nosso camponês inglês quisesse saber como as aranhas tecem suas teias, não fazia sentido perguntar ao padre, porque não havia resposta a essa pergunta em nenhuma das escrituras cristãs. Isso não significava, entretanto, que o cristianismo fosse falho. Ao contrário, significava que entender como as aranhas tecem suas teias não era importante. Afinal, Deus sabia perfeitamente bem como as aranhas fazem isso. Se fosse uma informação vital, necessária para a prosperidade e a salvação humana, Deus teria incluído uma explicação detalhada na Bíblia.
O cristianismo não proibia as pessoas de estudarem as aranhas. Mas os estudiosos de aranhas – se é que houve algum na Europa medieval – tinham de aceitar seu papel periférico na sociedade e a irrelevância de suas descobertas para as verdades eternas do cristianismo. Não importa o que um estudioso descobrisse sobre aranhas, borboletas ou tentilhões das Galápagos, esse conhecimento era quase trivial, sem qualquer influência sobre as verdades fundamentais da sociedade, da política e da economia.
Na realidade, as coisas nunca foram assim tão simples. Em todas as épocas, até mesmo nas mais devotas e conservadoras, houve pessoas que afirmaram que havia coisas importantes que sua tradição inteira ignorava. Mas tais pessoas geralmente eram marginalizadas ou perseguidas – ou então fundavam uma nova tradição e começavam a afirmar que elas sabiam tudo o que há para saber. Por exemplo, o profeta Maomé iniciou sua trajetória religiosa condenando seus colegas árabes por viverem na ignorância da verdade divina. Mas logo o próprio Maomé começou a afirmar que ele conhecia toda a verdade, e seus seguidores passaram a chamá-lo de “O Último dos Profetas”. Daí em diante, não havia necessidade de revelações além daquelas feitas a Maomé.
A ciência de nossos dias é uma tradição de conhecimento peculiar, visto que admite abertamente a ignorância coletiva a respeito da maioria das questões importantes. Darwin nunca afirmou ser “O Último dos Biólogos” e ter decifrado o enigma da vida de uma vez por todas. Depois de séculos de pesquisas científicas, os biólogos admitem que ainda não têm uma boa explicação para como o cérebro gera consciência. Os físicos admitem que não sabem o que causou o Big Bang, ou como conciliar a mecânica quântica com a Teoria Geral da Relatividade.
Em outros casos, teorias científicas concorrentes são alvo de debate acalorado com base no surgimento constante de novas evidências. Um bom exemplo são os debates sobre como gerenciar melhor a economia. Embora os economistas possam afirmar que seu método é o melhor, a ortodoxia muda a cada crise financeira e a cada bolha na bolsa de valores, e é amplamente aceito que a palavra final em economia ainda está para ser dita.
Em outros casos ainda, teorias específicas estão corroboradas de maneira tão consistente pelas evidências disponíveis que todas as alternativas foram há muito abandonadas. Tais teorias são aceitas como verdades – mas todos concordam que, se surgissem novas evidências contradizendo tais teorias, estas teriam de ser revisadas ou descartadas. Bons exemplos de teorias desse tipo são a teoria das placas tectônicas e a teoria da evolução.
A disposição para admitir ignorância tornou a ciência moderna mais dinâmica, versátil e indagadora do que todas as tradições de conhecimento anteriores. Isso expandiu enormemente nossa capacidade de entender como o mundo funciona e nossa habilidade de inventar novas tecnologias, mas nos coloca diante de um problema sério que a maioria dos nossos ancestrais não precisou enfrentar. Nosso pressuposto atual de que não sabemos tudo e de que até mesmo o conhecimento que temos é provisório se estende aos mitos partilhados que possibilitam que milhões de estranhos cooperem de maneira eficaz. Se as evidências mostrarem que muitos desses mitos são duvidosos, como manter a sociedade unida? Como fazer com que as comunidades, os países e o sistema internacional funcionem?
Todas as tentativas modernas de estabilizar a ordem sociopolítica não tiveram outra escolha senão confiar em um de dois métodos não científicos:

a. tomar uma teoria científica e, em oposição a práticas científicas comuns, declarar que é uma verdade final e absoluta. Esse foi o método usado por nazistas (que afirmaram que suas políticas raciais eram corolários de fatos biológicos) e comunistas (que afirmaram que Marx e Lenin haviam revelado verdades econômicas que jamais poderiam ser refutadas);
b. deixar a ciência fora disso e viver de acordo com uma verdade absoluta não científica. Essa tem sido a estratégia do humanismo liberal, que se baseia em uma crença dogmática nos direitos e no valor singular dos seres humanos – uma doutrina que tem embaraçosamente pouco em comum com o estudo científico do Homo sapiens.

Mas isso não deveria nos surpreender. Até mesmo a própria ciência tem de se apoiar em crenças ideológicas e religiosas para justificar e financiar suas pesquisas.
A cultura atual, entretanto, tem mostrado muito mais disposição para abraçar a ignorância do que qualquer cultura anterior. Uma das coisas que tornaram possível que as ordens sociais modernas se mantenham coesas é a disseminação de uma crença quase religiosa na tecnologia e nos métodos da pesquisa científica, que, em certa medida, substituíram a crença em verdades absolutas.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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