A
teoria literária brasileira produziu pensadores respeitáveis. Nomes
como os de Antonio Candido, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Leyla
Perrone Moisés, Flora Sussekind, Walnice Galvão enobrecem qualquer
literatura. Entre eles alinho o de Alcir Pécora, com quem divido,
aliás, uma grande paixão: pela obra e figura de Hilda Hilst. Seu
trabalho de organização e apresentação da ficção e poesia de
Hilda é, em si, um magnífico esforço crítico.
Acontece
que a fronteira entre teoria e ficção é não só instável, mas
problemática. Grandes escritores – penso em Cristovão Tezza e em
seus preciosos estudos sobre Mikhail Bakhtin – são também
competentes teóricos. Outros, como os argentinos Juan José Saer e
Ricardo Piglia, mesmo sem adotarem os preceitos mais rigorosos da
teoria, produzem pensamento de primeira qualidade a respeito de seu
ofício. São inesgotáveis as aproximações possíveis entre
literatura e pensamento, o que basta como prova de que a literatura
está viva.
Vista
de longe, a teoria literária muitas vezes se assemelha a uma
construção abstrata e enigmática que, em vez de aproximar-se, se
afasta em velocidade de seu objeto. Isso em parte é verdade, e é
justamente esse intervalo de suspeita que lhe assegura sua idoneidade
e força críticas. Abstrações, conceitos, sistemas teóricos podem
funcionar, contudo, como armaduras com que pensadores se defendem de
poemas e ficções. A crítica é um caminho bifurcado que conduz
tanto ao coração da obra quanto à sua negação peremptória.
No
recente debate produzido pelo “Prosa” a respeito das relações
entre a crítica e a literatura hoje, identifiquei-me, em particular,
com a posição do escritor João Paulo Cuenca. Sobretudo quando ele,
referindo-se às teses vigorosas de Pécora, reage assim: “A gente
pode discutir isso: se eu existo, se ele existe, mas sem que isso
signifique que a gente se odeia”. Cuenca toca em um ponto que
considero crucial: a diferença entre o debate de ideias e luta de
vaidades e prestígio. Infelizmente, também as fronteiras entre eles
oscila. Críticas vigorosas são reduzidas, de ambos os lados, a
ofensas pessoais. O que representa a morte, por banalização, da
literatura e de sua crítica.
Não
só a crítica tem muito a dizer a respeito da ficção: a ficção
também tem muito a dizer a respeito da crítica. Penso nisso
enquanto leio Cantos do mundo (Record), coletânea de contos
de Evando Nascimento. Não é possível ignorar a existência de
Evando: ele não só existe como afirma sua existência através de
uma escrita inconfundível, que não se contenta em ser mera
distração ou devaneio, mas se apresenta como um lugar de dúvida e
interrogação ferozes. Ela expande, assim, as fronteiras da própria
literatura (e, por isso, é excelente literatura), avançando sobre
as coisas do mundo para desafiá-las.
Um
conto, em particular, me ajuda a pensar o debate entre críticos e
escritores. Falo de “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na
USP”. O relato de Evando simula uma carta que o filósofo Walter
Benjamin teria enviado ao amigo Erich Auerbach. Datada de junho de
1940, três meses antes de sua morte real, a carta fictícia prolonga
sua vida verdadeira. Ele a escreve de malas prontas para embarcar
para o Brasil, aceitando um convite para dar aulas de literatura
alemã na Universidade de São Paulo.
A
ficção de Evando Nascimento invade e fertiliza o território da
crítica. Benjamin deve partir antes que o nazismo o esmague. Guarda
a esperança de que, nos trópicos, resista algum vestígio da
herança civilizatória que os europeus construíram e que Hitler se
empenha em destruir. Mas o filósofo personagem não se engana:
conhece bem a alma dividida que carregamos. Evando o leva a confessar
suas aflições: despede-se com tristeza de “tudo isso que a
civilização ergueu como monumento contra a barbárie, mas que
guarda também em si o rastro da barbárie cometida para que a
civilização fosse erguida”.
É
muito fácil (ainda que verdadeiro e necessário) olhar para Hitler e
dizer: “Monstro”. Muito mais difícil é admirar as telas da
Renascença, os castelos da Alemanha, as avenidas de Paris e pensar:
“Sob essa beleza algo de monstruoso também se guarda”. A crítica
mais dolorosa é a crítica a si mesmo. O Benjamin de Evando é um
brilhante teórico que não a teme. “A estrada é estreita, a via
de mão única não tem saída, há desvios e obstáculos por toda
parte, nem sei mais quem sou.” Duvida da própria existência. Eis
o mais difícil: falar não do desaparecimento alheio, mas do próprio
desaparecimento. Aceitar que, muitas vezes, é só com grande esforço
e aflição que sustentamos aquilo – que somos? Melhor dizer: que
tentamos ser. Escritores sabem que existem – seus escritos aí
estão, como provas. Mas conhecem também a grande falha que sustenta
essa existência. É com a mesma fragilidade, mas também com fome de
existir, que os críticos literários trabalham.
O
Benjamin de Evando me ajuda a pensar: “É preciso ter um alvo,
mirada ou meta, não se pode viver sem destino”. Pécora precisa
dizer: “Sou crítico”. Cuenca e Evando, por sua vez: “Sou
escritor”. Com que precariedade eles sustentam essas afirmações.
E que beleza, e grandeza, essa precariedade lhes empresta! É só com
grande esforço que sustentamos uma posição no mundo. Que
sustentamos um nome. Estamos, todos, confinados nas cavernas escuras
do singular. Mesmo no mundo das cópias e das reproduções em série,
a existência humana se desenrola na primeira pessoa. O plural é só
um recurso a que nos apegamos para escapar da solidão. Vivemos
naquela fronteira, diz o Benjamin de Evando, “que permanece ali,
não como uma última e suspirosa essência, ou digamos uma
misteriosa aura, mas como um dado irreproduzível, único”. É essa
marca indefinível que distingue Walter Benjamin de todos os outros
Walter. É ela também que torna críticos e ficcionistas
insubstituíveis. “Não há essência, só modos de estar”,
insiste o filósofo personagem. O amor ao único é, entre todas as
tarefas humanas, a mais difícil. Daí a necessidade de ler ficções
como as de Evando Nascimento, que nada nos prometem exceto a certeza
de existir.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário