quarta-feira, 29 de maio de 2019

Alguém pode, por favor, pisar nos freios?

Explicações tranquilas à parte, muitas pessoas entram em pânico quando ouvem falar dessa possibilidade. Elas estão felizes de seguir as recomendações de seus smartphones ou de tomar qualquer droga prescrita por seu médico, mas, quando ouvem falar de humanos elevados à categoria de super-humanos, dizem: “Espero estar morto antes que isso aconteça”. Uma amiga me disse uma vez que o que mais teme quanto a envelhecer é tornar-se irrelevante, uma mulher nostálgica incapaz de compreender o mundo a sua volta, ou de contribuir para ele. É isso que tememos coletivamente, como espécie, quando ouvimos falar de super-humanos. Sentimos que em um mundo assim, nossa identidade, nossos sonhos e até nossos temores serão irrelevantes, e não teremos mais nada com que contribuir. O que quer que você seja hoje — um jogador de críquete e hindu devoto, ou uma ambiciosa jornalista lésbica —, num mundo pós-atualização você se sentiria como um caçador do Neandertal em Wall Street. Você não teria uma sensação de pertencimento.
Os neandertais não tinham de se preocupar com o Nasdaq, já que estavam protegidos dele por dezenas de milhares de anos. No entanto, o mundo como o entendemos hoje pode entrar em colapso em décadas. Não podemos contar com a morte para nos salvar da irrelevância. Mesmo que os deuses não caminhem por nossas ruas em 2100, a tentativa de elevar o Homo sapiens provavelmente tornará o mundo irreconhecível ainda neste século. A pesquisa científica e os desenvolvimentos tecnológicos estão se processando em um ritmo muito mais rápido daquele que a maioria de nós pode compreender…
Se você conversar com especialistas, muitos deles lhe dirão que ainda estamos muito distantes de ter bebês geneticamente programados ou inteligência artificial em nível humano. Mas a maioria deles pensa numa escala de tempo regida por bolsas acadêmicas e empregos em faculdades. Portanto, “muito distante” pode significar vinte anos e “nunca” pode denotar nada mais que cinquenta anos.
Lembro o dia em que deparei com a internet pela primeira. Foi em 1993, quando eu cursava o ensino médio. Fui com alguns companheiros visitar um amigo chamado Ido, hoje um cientista de computação. Queríamos jogar pingue-pongue. Ido era aficionado de computadores e antes de abrir a mesa de pingue-pongue insistiu em nos mostrar a mais recente maravilha de sua área. Conectou um cabo telefônico ao seu computador e pressionou algumas teclas. Por um minuto tudo o que conseguimos ouvir foram rangidos, guinchos, zumbidos, e depois silêncio. Não tinha dado certo. Nós resmungamos e protestamos, mas Ido tentou mais uma vez. E outra. E outra. Finalmente ele deu um grito e anunciou que tinha conseguido conectar seu computador ao computador central da universidade, que ficava ali perto. “E o que tem no computador central?”, perguntamos. “Bem”, ele admitiu, “ainda não tem nada. Mas dá para pôr todo tipo de coisas lá.” “Como o quê?”, perguntamos. “Não sei”, ele disse, “todo tipo de coisas.” Isso não soava muito promissor. Fomos jogar pingue-pongue, e nas semanas seguintes nos divertimos com um novo passatempo, fazendo graça da ridícula ideia de Ido. Isso foi menos de 25 anos atrás (em relação ao momento em que escrevo). Quem sabe o que vai se passar em 25 anos a partir de agora?
É por isso que cada vez com mais frequência indivíduos, organizações, corporações e governos estão pensando muito seriamente na busca da imortalidade, da felicidade e de poderes divinos. Companhias de seguro, fundos de pensão, sistemas de saúde e ministérios de Fazenda estão horrorizados com o salto na expectativa de vida humana. As pessoas estão vivendo muito mais do que se esperava, e não há dinheiro suficiente para pagar sua aposentadoria e os tratamentos médicos de que necessitam. Os setenta anos ameaçam tornar-se os novos quarenta, e especialistas defendem a elevação da idade de aposentadoria e a reestruturação do mercado de trabalho.
Quando nos damos conta da rapidez com que nos aproximamos do grande desconhecido, e de que não podemos contar nem mesmo com a morte para nos proteger disso, nossa reação é esperar que alguém pise nos freios para nos desacelerar. Mas não podemos pisar nos freios, por diversas razões.
Primeiro, ninguém sabe onde os freios estão. Embora alguns especialistas conheçam bem os desenvolvimentos em algum campo, como é o caso da inteligência artificial, da nanotecnologia, de megadados ou da genética, ninguém é especialista em tudo. Ninguém, portanto, é capaz de ligar todos os pontos e enxergar o quadro completo. Os diversos campos influenciam uns aos outros de maneiras tão intricadas que mesmo as mentes mais avançadas não conseguem prever como descobertas em inteligência artificial podem impactar a nanotecnologia, ou vice-versa. Ninguém consegue absorver todas as recentes descobertas científicas, ninguém é capaz de predizer qual será o aspecto da economia global daqui a dez anos, e ninguém tem uma pista de para onde estamos indo nessa carreira desabalada. Como ninguém compreende o sistema como um todo, ninguém pode fazê-lo parar.
Segundo, se alguém de algum modo conseguir pisar nos freios, nossa economia vai entrar em colapso, assim como a sociedade. Como será explicado em um capítulo adiante, a economia moderna precisa de um crescimento constante e por tempo indefinido para sobreviver. Se o crescimento parar, a economia não vai se ajustar num patamar mais baixo, num equilíbrio aconchegante: ela se despedaçará. É por isso que o capitalismo nos incentiva a buscar a imortalidade, a felicidade e a divindade. Há um limite para o número de sapatos que podemos calçar, para o número de carros que podemos guiar e para os dias de férias que podemos usufruir. Uma economia construída sobre um crescimento perpétuo apresenta uma necessidade interminável de projetos — tais como a busca da imortalidade, da felicidade e da divindade.
Bem, mesmo com uma necessidade sem fim de projetos, por que não se fixar na felicidade e na imortalidade, deixando de lado a amedrontadora questão dos poderes sobre-humanos? Porque eles são inseparáveis dos outros dois. Quando se desenvolvem pernas biônicas que permitem a paraplégicos caminhar novamente, a mesma tecnologia pode ser aprimorada para pessoas saudáveis. Quando se descobre como deter a perda de memória dos idosos, os mesmos tratamentos poderiam ser aplicados para melhorar a memória dos jovens.
Não existe uma linha que separa claramente a cura do aprimoramento. A medicina quase sempre atua salvando pessoas de se posicionarem abaixo dos padrões existentes, mas as mesmas ferramentas e o mesmo know-how podem mais tarde ser usados para elevá-los. O Viagra começou como um tratamento para problemas de pressão sanguínea. Para surpresa e deleite da Pfizer, acabou se revelando como uma droga que também pode se sobrepor à impotência. Ele permitiu a milhões de homens recuperar aptidões sexuais normais, mas não demorou muito para que homens que não enfrentavam problemas de impotência passassem a usar a mesma pílula para elevar o padrão e adquirir uma potência sexual que não tinham antes.
O que acontece com drogas específicas pode acontecer também com campos inteiros da medicina. A cirurgia plástica moderna surgiu na Primeira Guerra Mundial, quando Harold Gillies começou a tratar de lesões faciais no hospital militar de Aldershot. Quando a guerra terminou, os cirurgiões descobriram que aquelas técnicas poderiam transformar narizes perfeitamente saudáveis, mas feios, em espécimes mais bonitos. Embora a cirurgia continuasse a ajudar os doentes e os lesionados, cada vez mais atenção foi dedicada ao aprimoramento dos saudáveis. Atualmente, os cirurgiões plásticos faturam milhões em clínicas particulares com o único e explícito objetivo de aprimorar os sadios e embelezar os ricos.
O mesmo poderia acontecer com a engenharia genética. Se um bilionário declarasse abertamente o desejo de criar uma prole superinteligente, haveria clamor público. Mas isso não vai acontecer desse modo. Mais provavelmente vamos deslizar por uma encosta escorregadia, que tem início com pais cujo perfil genético poria seus filhos em alto risco de serem portadores de doenças genéticas fatais. Eles então realizam a fertilização in vitro e testam o DNA do óvulo fertilizado. Se tudo estiver em ordem, ótimo. Mas, se o teste de DNA revelar mutações indesejadas, o embrião é destruído.
Mas por que arriscar fertilizando um único óvulo? Melhor seria fertilizar vários, de maneira que, ainda que se três ou quatro fossem defeituosos, haveria pelo menos um bom. Quando esse procedimento de seleção in vitro se tornar aceitável e barato, seu emprego poderá se disseminar. Mutações constituem um risco onipresente. Todas as pessoas carregam em seu DNA algumas mutações danosas e alelos que estão aquém da condição ótima. A reprodução sexual é uma loteria. (Uma anedota famosa — e provavelmente apócrifa — conta de uma conversa, em 1923, entre o prêmio Nobel [de Literatura] Anatole France e a bela e talentosa dançarina Isadora Duncan. Debatendo o então popular movimento pela eugenia, Duncan disse: “Imagine só uma criança com a minha beleza e o seu cérebro!”. France retrucou: “Sim, mas imagine uma criança com a minha beleza e o seu cérebro”.) Bem, se é assim, por que não viciar a loteria? Fertilize vários óvulos e escolha aquele que apresentar a melhor combinação. Desde que a pesquisa com células-tronco nos permite criar um suprimento ilimitado de embriões humanos com baixo custo, é possível selecionar o bebê ideal entre centenas de candidatos, todos carregando nosso DNA , todos perfeitamente naturais, e nenhum deles requerendo uma engenharia genética futurista. Se fizermos a iteração desse procedimento por algumas gerações, facilmente obteremos super-humanos (ou uma repugnante distopia).
E se, depois de fertilizar numerosos óvulos, descobrirmos que todos eles contêm algumas mutações letais? Destruiríamos todos os embriões? Em vez disso, por que não substituir os genes problemáticos? Um método bem-sucedido para isso envolve o DNA mitocondrial. Mitocôndrias são minúsculas organelas no interior de células humanas, que produzem a energia usada pela célula. Elas têm o próprio grupo de genes, que é completamente separado do DNA no núcleo da célula. O DNA mitocondrial defeituoso acarreta várias doenças debilitantes ou mesmo fatais. Com a atual tecnologia in vitro, é tecnicamente factível vencer doenças genéticas mitocondriais por meio da criação de “bebês com três pais”. O DNA nuclear do bebê vem de dois pais, enquanto o DNA mitocondrial vem de uma terceira pessoa. Em 2000, Sharon Saarinen, de West Bloomfield, Michigan, deu à luz uma bebê saudável, Alana. O DNA nuclear de Alana veio de sua mãe, Sharon, e de seu pai, Paul, mas seu DNA mitocondrial veio de outra mulher. De uma perspectiva puramente técnica, Alana tem três pais biológicos. Um ano depois, em 2001, o governo dos Estados Unidos baniu esse tratamento em face de preocupações relacionadas com segurança e considerações éticas.
No entanto, em 3 de fevereiro de 2015, o Parlamento britânico votou a favor da chamada lei “do embrião de três pais”, que permite a realização desse tratamento — e a pesquisa a ele relacionada — no Reino Unido. Hoje é tecnicamente inexequível, e ilegal, substituir o DNA nuclear, mas, se e quando as dificuldades técnicas forem resolvidas, a mesma lógica que favoreceu a substituição de DNA mitocondrial defeituoso poderia afiançar tal procedimento com o DNA nuclear.
Depois da seleção e da substituição, o passo potencial seguinte é o da correção. Uma vez que se torne possível corrigir genes letais, por que passar pelo transtorno de inserir algum DNA estranho, quando se pode reescrever o código e transformar um perigoso gene mutante em sua versão benigna? Poderíamos então começar a usar o mesmo mecanismo para consertar, além de genes letais, todos os responsáveis por doenças menos fatais, como o autismo, a obesidade e a estupidez. Quem ia querer que seu filho sofresse de algum desses males? Suponha que um teste genético indicasse que sua filha ainda por nascer seria inteligente, bonita e bondosa — mas que sofreria de depressão crônica. Você não gostaria de salvá-la de anos de sofrimento com uma intervenção rápida e indolor num tubo de ensaio?
E já que você está por ali, por que não dar um pequeno empurrão à criança? A vida é dura e desafiadora até mesmo para pessoas saudáveis. Assim, seria muito conveniente que a menininha tivesse um sistema imunitário mais forte que o normal, uma memória acima da média, ou um humor especialmente bom. Talvez você não quisesse isso para sua filha — mas e se os vizinhos fizessem isso para os filhos deles? Você deixaria sua filha para trás? E se o governo proibisse todos os cidadãos de praticar engenharia genética com seus bebês, e os norte-coreanos a utilizassem, resultando na produção de gênios espantosos, artistas e atletas que de longe iriam nos superar em desempenho? Dessa maneira, engatinhando, estamos a caminho de um catálogo genético de crianças.
Curar é a justificativa inicial para cada uma dessas atualizações. Encontre alguns professores que fazem experimentos em engenharia genética ou em interfaces entre cérebro e computador e pergunte-lhes por que estão envolvidos em tal pesquisa. Muito provavelmente a resposta se relacionaria à cura de doenças. “Com a ajuda da engenharia genética”, explicariam, “podemos vencer o câncer. E se pudéssemos conectar cérebros e computadores diretamente, poderíamos curar a esquizofrenia.” Talvez, mas isso não termina por aí. Quando conectarmos com êxito cérebros e computadores, usaremos essa tecnologia somente para curar a esquizofrenia? Se alguém realmente acredita nisso, então ele ou ela pode saber muito sobre cérebros e computadores, porém muito pouco sobre a psique e a sociedade humanas. Depois de feita uma descoberta importante, não se poderá restringir seu uso para a cura nem proibir totalmente sua aplicação para atualizações.
Claro que os humanos podem limitar e limitam o uso de novas tecnologias. Os movimentos favoráveis à eugenia deixaram de ser apoiados depois da Segunda Guerra Mundial, e, embora o comércio de órgãos humanos atualmente seja não só possível como potencialmente muito lucrativo, ainda é visto como uma atividade marginal. Um dia projetar bebês pode se tornar tecnologicamente tão exequível quanto assassinar pessoas para colher seus órgãos — mas continua a ser algo marginal.
Assim como escapamos das garras da Lei de Tchékhov na guerra, podemos também escapar em outros campos de ação. Algumas armas aparecem no palco sem que jamais sejam disparadas. Por isso é tão vital pensar numa nova agenda para a humanidade. Exatamente porque temos alguma opção no que concerne ao uso de novas tecnologias, é melhor que compreendamos o que está acontecendo e tenhamos uma opinião a respeito, antes que isso tenha uma opinião por nós.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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