sexta-feira, 17 de maio de 2019

A tapeçaria burlada

Por que o poeta disse e todos repetem “Verde que te quero verde”?, pensava Clô. Por que não dizer “Verde que te quero azul”, ou “Roxo que te quero verde”?
Clô pensamenteava nisso porque estudava tapeçaria e desejava uma cor que fosse outra cor, por transparência, reflexo ou calculada ilusão visual. Clô brincava de tapeçaria, esta a verdade. Queria uma composição que fosse outra.
O anjo da guarda de Clô achou que não estava direito, e toda noite corrigia a trama, retificando as cores no seu devido padrão, e nada de modernices. Era um anjo acadêmico, meio rixoso.
Ela só percebeu a interferência do anjo porque, acordada, viu a hora em que ele alterava a tecedura de ponto grosso, impondo o desenho clássico, na cor devida. Furiosa, atirou-se ao anjo. Os dois travaram luta desigual, pois os braços dele eram deslizantes e ardentes, suas unhas luminosas tanto se cravavam na tapeçaria como nos braços de Clô.
A obra ficou destruída, e desde então a moça pensa em outras coisas.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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