quinta-feira, 23 de maio de 2019

A deserção do Cristo

Não admiro os profetas, bem como os fanáticos religiosos, que nunca duvidaram de sua missão ou de sua fé. Eu meço o valor dos profetas de acordo com sua capacidade de duvidar, com a frequência de seus momentos de lucidez. Ainda que somente a dúvida lhes torne verdadeiramente humanos, ela é, neles, mais perturbadora do que nos outros homens. O resto não passa de intransigência, sermão, moral e pedagogia. Eles pretendem instruir aos outros, conceder-lhes salvação, revelar-lhes a via da verdade e mudar seu destino, como se suas certezas valessem mais do que as de seus discípulos. O critério da dúvida só permite distinguir os profetas dos maníacos. Entretanto, quando eles duvidam, não é acaso um pouco tarde? Aquele que se sabia filho de Deus somente duvidou nos últimos instantes: pois o Cristo hesitou verdadeiramente apenas uma vez, não na montanha, mas preso na cruz. Estou persuadido de que Jesus então invejou o destino do mais anônimo dos homens e que, se pudera, ele teria se retirado para o canto mais obscuro da terra, onde ninguém mais poderia exigir-lhe esperança ou redenção. Pode-se imaginar que, deixado sozinho com os soldados romanos, ele lhes tenha implorado para retirar os pregos e descê-lo, a fim de poder fugir para longe, onde o eco dos sofrimentos humanos não mais o atingiria. Não que o Cristo tenha subitamente cessado de acreditar em sua missão - ele sustentava muito de iluminado para se tornar cético -, mas é muito mais difícil morrer pelos outros do que por si mesmo. Jesus suportou a crucificação, consciente de que somente o sacrifício de si faria sua mensagem triunfar.
Assim são os homens: para que eles acreditem em nós, devemos renunciar a tudo o que nos pertence, e depois a nós mesmos. Eles exigem nossa morte como garantia da autenticidade de nossa fé. Mas por que eles admiram as obras escritas com sangue? Porque esta distancia-lhes do sofrimento, ou ainda, concede-lhes uma ilusão. Eles querem encontrar sangue e lágrimas atrás de nossos ditos. A admiração do povo é feita de sadismo.
Se Jesus não tivesse sido morto na cruz, o cristianismo jamais poderia ter triunfado. Os mortais duvidam de tudo - à exceção da morte. A do Cristo constituiu, então, a seus olhos, a suprema certeza, a prova-mestra da validez dos princípios cristãos. Jesus poderia ter facilmente escapado da crucificação, ou sucumbido às sedutoras tentações do diabo. Quem não pactua com o diabo não tem nenhuma razão para viver, pois ele exprime simbolicamente a vida melhor do que o próprio Deus. Se eu lamento algo, é que o diabo tenha tão pouco me tentado... Mas Deus também não se preocupou particularmente comigo. Os cristãos nunca entenderam que Deus está mais longe dos homens do que eles mesmos estão de Deus. Imagino perfeitamente um Deus exasperado pela trivialidade da sua Criação, aborrecido da terra e dos céus. Vejo-o lançar-se em direção ao nada, assim como Jesus deixando sua cruz...
O que teria acontecido, então, se os soldados romanos tivessem dado ouvidos à súplica de Jesus, se eles o tivessem des-crucificado e o deixado partir? Não seria certamente para pregar sua fé que ele teria ido ao outro lado do mundo, mas para morrer sozinho, longe das lágrimas e da compaixão dos homens. Ainda que, por acaso, Jesus não tenha implorado aos soldados sua liberação, não posso deixar de pensar que esta ideia lhe tenha aflorado. Ele se cria seguramente o filho de Deus, mas isto não o impediu, uma vez confrontado pelo sacrifício, de duvidar e de temer a morte. Durante a crucificação, ele deve ter conhecido momentos em que, se ele não duvidou de ser o filho de Deus, ele ao menos lamentou sê-lo.
É bastante possível que o Cristo tenha sido na realidade um personagem bem menos complicado do que nós o imaginamos - que ele tenha tido menos dúvidas e menos pesares. Pois ele somente as teve, quanto à sua ascendência divina, no limiar da morte. Nós temos, nós humanos, tantas dúvidas e pesares que nenhum de nós poderia mais se acreditar o filho de Deus. Eu detesto em Jesus tudo o que é sermão, moral, promessa e certeza. O que eu admiro nele são seus momentos de hesitação - os instantes realmente trágicos da sua existência, que não me parecem, ainda assim, nem os mais importantes, nem os mais os mais dolorosos que se possa imaginar. Pois, se o sofrimento devia servir como critério, quantos não teriam o direito de se considerar, ainda mais do que Jesus, o filho de Deus?
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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