Neste
inverno do ano da França no Brasil me lembrei do papagaio Bonpland,
parente ancestral de Loulou, o famoso perroquet amazone do
conto “Um coração simples”, de Flaubert.
Antes
do último sopro de vida, Félicité, a protagonista desse conto,
“acreditou ver nos céus entreabertos um papagaio gigantesco,
planando acima de sua cabeça”. Essa visão alucinante transforma o
papagaio empalhado na imagem do Espírito Santo. É um momento de
“sensualidade mística”, de pacificação depois de meio século
de vida sofrida da pobre Félicité.
Bonpland
não teve o dom de virar nenhuma divindade, ele foi apenas um amigo
conterrâneo. Eu o trouxe de Brasília, onde ele reclamava do ar seco
e do excesso de verde da capital. Não o verde da vegetação, que
ainda era coberta de poeira vermelha, e sim o verde-oliva, uma cor
onipresente e assustadora, para mim e para o jovem Bonpland.
Mas
lembro que o louro gostou de São Paulo, comia caqui e banana com um
apetite voraz, e, quando me via triste e cansado nas noites que eu
estudava para o vestibular, ele gritava: “Alors, mon copain, on
chante quelque chose?”.
Isso
mesmo, leitor. Era um papagaio afrancesado, porque pertencera à
minha avó, que se comunicava com ele em francês nas manhãs
manauaras. Quando a matriarca soube que eu gostava de Bonpland, me
disse: “Então leva esse bicho para Brasília. Tenho mais dois no
quintal”.
Não
se adaptou a Brasília, passava o dia calado, bicava sem vontade uma
fruta, franzia a testa quando eu saía de casa e dormia tanto que
parecia uma ave deprimida. Quando perguntei se ele queria voltar para
o Amazonas, respondeu com ar indeciso: “Pas encore”. A
mesma pergunta lhe fiz em São Paulo, e sua resposta foi: “Pas
de tout”.
Eu
o levava para passear na praça da República e no Jardim da
Aclimação. Na manhã de um sábado, quando nós dois andávamos —
ele sempre no meu ombro — na Barão de Itapetininga, entramos na
Livraria Francesa. Bonpland deu um show para os livreiros. Disse aos
gritos as frases em francês que ele sabia de cor, frases curtas que
lembravam a escrita de Camus, e não frases caudalosas, sinuosas e
labirínticas, à la Proust.
Bonpland
preferia a concisão ao jorro verbal e à hipérbole, preferia a
brevidade à ênfase, e isso foi, para mim, uma lição de estilo. No
fim do verão, foi uma lição de vida. Eu ainda não conhecia
ninguém, falava pouco, era um vestibulando sem vocação
profissional, um provinciano meio perdido numa cidade desconhecida,
que, naquela época, me parecia hostil. Bonpland era uma espécie de
cão fiel, minúsculo, tagarela. Um cãozinho verde, alado. Quando eu
me preparava para sair do quarto, ele protestava com alaridos
agressivos. Meus vizinhos da pensão se assustavam com a histeria da
ave, os outros vestibulandos reclamavam do estardalhaço, então eu
repreendia o bichinho, dizia com firmeza em francês: “Fica quieto,
Bonpland”. E ele calava. Mas, na rua, me arrependia de ter ralhado
com ele e, quando voltava para o quarto, Bonpland se fazia de
difícil, dava as costas para mim, dormia ou fingia dormir mais cedo.
Por vingança, me acordava às cinco da manhã, gritando: “Putain,
il fait beau, il fait beau”. E nem tinha amanhecido. Eu o
chamava de crápula, papagaio besta, que me deixasse dormir. Mas não
adiantava, a ladainha persistia, e eu ia tomar café. Vivemos meses
assim, entre birras e carinhos, e quando a primeira rajada de frio
chegou, Bonpland curvou a cabeça, as penas eriçadas, os olhinhos
tristes. Era uma ave solar, o frio o deprimia, talvez o fizesse
sofrer.
Duas
vezes fugiu do quarto, com a esperança de sentir o calor do
Amazonas. Na primeira fuga foi encontrado por um velho nissei, que
apareceu na pensão com a ave numa gaiola de bambu.
“Papagaio
triste, né?”
Concordei.
E agradeci àquele homem generoso.
A
segunda escapada me deu trabalho: ele subiu até o alto de uma
sibipiruna numa pracinha da Liberdade e ficou empoleirado por várias
horas. Juntou gente para vê-lo. Algumas pessoas me julgaram louco,
porque eu gritava em francês com a cabeça erguida para o céu; tive
que explicar que meu papagaio era bilíngue e esnobe, e fora
acostumado a ouvir carões em francês. Uma francesa ouviu perplexa a
conversa em sua língua materna, quis comprar o papagaio e levá-lo
para Marselha. Neguei com veemência. E quando ela desatou a falar em
francês, tentando seduzir a ave, eis que Bonpland saltitou de galho
em galho até cair no meu ombro. Pôs o bico no meu pescoço e fez
uns dengos exagerados.
A
francesa entendeu que era um caso de amor.
O
frio da última semana de junho foi fatal. No dia 24, ele amanheceu
sem apetite, e do bico escorria um líquido viscoso. Não comeu nada
e andava de banda, arrastando-se com esforço. Tentei conversar com
ele, mas ficou totalmente mudo, com os olhinhos fechados. Ia levá-lo
ao veterinário, mas morreu no dia 26 de junho, há exatos 39 anos.
Felizmente
eu já tinha bons amigos. Dois deles, Arrigo e Eliete, lamentaram a
morte desse papagaio bilíngue e até entoaram uma balada quando ele
foi enterrado ao pé de uma jabuticabeira do quintal da pensão. Não
é uma árvore do Amazonas, mas todas as árvores são belas. Além
disso, Bonpland bem que gostava de bicar jabuticabas.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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