terça-feira, 30 de abril de 2019

O homem que compreendeu

Consagrou-se ao marcar trinta e sete gols num jogo. Sua média de gols por partida ficou vinte e seis, nunca menos. Não havia beques para escorá-lo, nem esquemas para anular seu jogo rápido, bonito, eficiente. Jogava para ele, para o time e para o público. A bola, em seus pés, ninguém tirava. Ela parecia grudar na chuteira. Atraía a bola, como um ímã. Bola rebatida, espirrada, dividida, era dele. Distribuía com perfeição, lançava com precisão. Mas só aceitava jogar com jogador inteligente. Os outros tinham receio quando entravam em campo, ao seu lado. Seriam humilhados e xingados, se errassem. Não respondiam, abaixavam a cabeça, concordavam. E se esforçavam, davam tudo. Então, eram jogos maravilhosos, corridos. Ele mandava e desmandava, dava a escalação, isolava jogadores, formava outros. Sempre falando pouco, apenas olhando, o olhar firme, frio, que dizia tudo. Não dava entrevistas, tratava mal a imprensa, ria dos cronistas, dizia que eram analfabetos. Os juízes não chamavam sua atenção. Ele fazia os juízes abaixarem a cabeça. Mas, de um modo ou de outro, era disciplinado. Quando fazia, fazia sem que vissem. Pontapés no tornozelo, paulistinhas, bico de chuteira no joelho, socos no estômago, no fígado, nos rins. Provocava os adversários, ria deles, desprezava-os, passava a bola debaixo das pernas, dava chapéus, lençóis, ficava girando em volta do outro com a bola presa, e o outro, bobo. Era odiado. Também o público, apesar do espetáculo que ele dava, o odiava. O fluido dele com o público era estranho, funcionava ao contrário. Iam vê-lo, porque a cada jogo ele inventava uma coisa: um dia era um gol de traseiro, no outro, driblava o time inteiro, deixava a bola na risca do gol, depois, jogava dez minutos numa perna só, entrava em campo de óculos escuros. Um dia telefonou para os jornais, disse que estava numa boate, bebendo e cheio de mulheres. Fotografia, dessa vez ele se arrebenta. Deixou a boate às sete da manhã. À tarde, marcou vinte e cinco gols. Correu mais que nos outros dias. Não se machucava. Entrava em jogadas que partiriam em cinquenta qualquer perna e saía com a bola. Oferecia a canela para os chutes. As travas das chuteiras escorregavam pela sua pele, não entravam. Tinha os reflexos perfeitos, raciocinava seis vezes num milésimo de segundo. Até que um dia de muito calor, após uma hora e meia de ginástica, todo o time pregou. Ele riu e saiu correndo em volta do campo. Deu cinquenta voltas. Depois, foi treinar chutes a gol. Quando parou, o professor de educação física se aproximou. Olhando fixamente em seus olhos, o professor teve medo. E compreendeu.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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