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Por gerações incontáveis nosso sistema bioquímico adaptou-se à
necessidade de aumentar nossas probabilidades de sobrevivência e
reprodução, não de promover nossa felicidade. O sistema bioquímico
recompensa ações que levam à sobrevivência e à reprodução com
sensações agradáveis. Mas se trata apenas de um artifício efêmero
de venda. Nós nos esforçamos para ter comida e um parceiro ou
parceira a fim de evitar sensações desagradáveis de fome e de
usufruir sabores agradáveis e orgasmos prazerosos. Mas sabores
agradáveis e orgasmos prazerosos não duram muito tempo, e se
quisermos tornar a senti-los teremos de sair em busca de mais comida
e de parceiros ou parceiras.
O
que aconteceria se uma mutação rara resultasse na criação de um
esquilo que, após comer uma única noz, se tornaria capaz de
desfrutar de uma sensação perene de felicidade? Tecnicamente, isso
poderia ser feito mediante novas ligações no cérebro do esquilo.
Quem sabe isso aconteceu realmente com algum esquilo sortudo milhões
de anos atrás? Mas, se foi assim, o tal esquilo teve uma vida
extremamente feliz e extremamente curta, e esse foi o fim da mutação
rara. Pois o feliz animalzinho não teria se dado o trabalho de
buscar mais nozes, muito menos um parceiro ou parceira. Os esquilos
rivais, que sentem fome cinco minutos depois de terem comido uma noz,
apresentariam mais possibilidades de sobreviver e de transmitir seus
genes à geração seguinte. Pela mesma razão, as nozes que nós
humanos buscamos reunir — empregos lucrativos, casas espaçosas,
parceiros ou parceiras de boa aparência — raramente nos satisfazem
por muito tempo.
Alguns
dirão que isso não é ruim, porque não é o objetivo que nos torna
felizes — é a jornada. Escalar o monte Evereste é mais prazeroso
do que ficar de pé em seu topo; o flerte e as preliminares são mais
excitantes do que o orgasmo em si; e conduzir experimentos inovadores
em laboratórios é mais interessante do que receber prêmios e
reconhecimento. Mas isso quase não modifica o quadro. Indica apenas
que a evolução nos controla com uma grande abrangência de
prazeres. Às vezes ela nos seduz com sensações de felicidade e
tranquilidade, enquanto em outras ocasiões nos empurra adiante com
eletrizantes sensações de júbilo e excitação.
Quando
um animal está em busca de algo que aumente suas probabilidades de
sobrevivência e reprodução (por exemplo, alimento, parceiros ou
status social), o cérebro produz sensações de vigilância e de
excitação que o impelem a fazer esforços ainda maiores, pois elas
são muito agradáveis. Num experimento famoso, cientistas conectaram
eletrodos ao cérebro de ratos, os quais permitiam aos animais criar
sensações de excitação simplesmente apertando um pedal. Quando se
ofereceu aos ratos a opção entre ganhar uma comida saborosa ou
apertar o pedal, eles preferiram o pedal (algo similar à preferência
das crianças em jogar video game a descer para jantar). Os ratos
pressionavam o pedal sem parar, até desabarem de fome e exaustão.
36 Humanos também preferem a excitação da corrida ao descanso nas
láureas do sucesso. Mas o que faz a corrida tão atraente são os
estimulantes que a acompanham. Ninguém escolheria escalar montanhas,
jogar video game ou marcar um encontro às cegas se essas atividades
fossem acompanhadas apenas de sensações desagradáveis de estresse,
desespero ou tédio.
No
entanto, as sensações de excitação da corrida são tão
transitórias quanto as sensações jubilosas de vitória. O Don Juan
que aproveita a empolgação de um encontro, o homem de negócios que
rói as unhas enquanto observa os altos e baixos do índice Dow
Jones, e o jogador de games que curte a matança de monstros que está
promovendo na tela do computador — nenhum deles vai sentir alguma
satisfação com o ato de relembrar as aventuras já vividas. Como os
ratos que apertam o pedal repetidas vezes, os galanteadores, os
magnatas dos negócios e os jogadores de video game precisam ter
novas sensações todos os dias. Pior: nesses casos, as expectativas
se adaptam às condições, e os desafios de ontem tornam-se, rápido
demais, o tédio de hoje. Talvez a chave para a felicidade não seja
nem a corrida nem a medalha de ouro, e sim a combinação de doses
certas de excitação e tranquilidade; mas a maioria das pessoas
tende a saltar toda a distância que vai do estresse ao tédio e, ao
fim, segue descontente com um e com o outro.
Se
a ciência está certa e nossa felicidade é determinada por nosso
sistema bioquímico, então a única maneira de assegurar um
contentamento duradouro é equipar esse sistema. Esqueça o
crescimento econômico, as reformas sociais e as revoluções
políticas: para elevar os níveis globais de felicidade, precisamos
manipular a bioquímica humana. E é exatamente isso que começamos a
fazer durante as últimas décadas. Cinquenta anos atrás, as drogas
psiquiátricas carregavam em seu bojo um grave estigma. Hoje esse
estigma foi quebrado. Para o bem ou para o mal, uma porcentagem
crescente da população toma remédios psiquiátricos regularmente,
não apenas para curar doenças mentais debilitantes, mas também
para enfrentar depressões mais corriqueiras e melancolias
ocasionais.
Por
exemplo, um número crescente de crianças em idade escolar toma
estimulantes como a Ritalina. Em 2011, 3,5 milhões de crianças
americanas tomaram medicamentos para o transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH). No Reino Unido, o número se
elevou de 92 mil crianças em 1997 para 786 mil em 2012. O objetivo
original consistia em tratar distúrbios de atenção, mas hoje
crianças totalmente saudáveis ingerem esses remédios para melhorar
o desempenho e atender às crescentes expectativas de pais e
professores. Muitos se opõem a isso e alegam que o problema está no
sistema educacional e não nas crianças. Se existem alunos que
sofrem de transtornos de atenção e de estresse e tiram notas
baixas, talvez a culpa deva ser atribuída aos métodos de ensino
antiquados, às classes lotadas e a um ritmo de vida que não é
natural. Talvez devamos modificar as escolas, e não as crianças. É
interessante ver como esses argumentos evoluíram. Os métodos
educacionais têm sido motivo de discussão há milhares de anos.
Tanto na China como na Grã-Bretanha vitoriana, cada um tinha um
método de sua preferência e se opunha veementemente às
alternativas existentes. Mas há um ponto com que todos sempre
concordaram: para poder melhorar a educação, era preciso mudar as
escolas. Hoje, pela primeira vez na história, algumas pessoas pensam
que seria mais eficaz mudar a bioquímica dos alunos.
Com
os exércitos acontece o mesmo: 12% dos soldados americanos no Iraque
e 17% dos soldados americanos no Afeganistão tomavam ou pílulas
para dormir ou antidepressivos como recurso para lidar com a pressão
e a angústia provocadas pela guerra. Medo, depressão e trauma não
são causados por tiros, armadilhas explosivas ou carros-bombas. São
causados por hormônios, neurotransmissores e redes neurais. Dois
soldados podem estar ombro a ombro em uma tocaia — um vai ficar
paralisado pelo terror, perder a noção do que está acontecendo e
ter pesadelos durante anos depois do ocorrido e o outro vai avançar
corajosamente e ganhar uma medalha. A diferença está na bioquímica
dos soldados. Se encontrarmos um modo de controlá-la, de um só
golpe produziremos soldados mais felizes e exércitos mais eficazes.
A
busca bioquímica da felicidade é também a principal causa do crime
no mundo. Em 2009, metade dos internos em prisões federais nos
Estados Unidos estava nessa condição por causa de drogas; 38% dos
prisioneiros na Itália foram condenados por crimes relacionados com
drogas; 55% dos presos no Reino Unido relataram ter cometido seus
crimes em conexão com o consumo ou o tráfico de drogas. Um
relatório de 2001 revelou que 62% dos condenados na Austrália
estavam sob influência de drogas quando cometeram o crime pelo qual
estavam encarcerados. 42 Pessoas consomem bebidas alcoólicas para
esquecer, fumam baseados para se sentirem em paz, fazem uso de
cocaína e metanfetaminas para ficarem espertas e confiantes,
enquanto o Ecstasy proporciona uma sensação de êxtase, e o LSD faz
o usuário ir ao encontro de Lucy in the sky with diamonds. O
que algumas pessoas esperam alcançar estudando, trabalhando ou
criando uma família, outras tentam obter muito mais facilmente por
meio da dosagem correta de moléculas. Essa é uma ameaça
existencial à ordem social e econômica, motivo pelo qual os países
estão travando uma obstinada, sangrenta e desesperada guerra contra
o crime bioquímico.
O
Estado espera poder regular a busca bioquímica da felicidade
separando as manipulações “ruins” das “boas”. O princípio
é claro: as manipulações bioquímicas que fortalecem a
estabilidade política, a ordem social e o crescimento econômico são
permitidas e até mesmo estimuladas (como aquelas que acalmam
crianças hiperativas na escola ou empurram soldados ansiosos para a
batalha). Manipulações que ameacem a estabilidade e o crescimento
são banidas. Mas a cada ano surgem novas drogas nos laboratórios
das universidades, companhias farmacêuticas e organizações
criminosas, e as necessidades do Estado e do mercado também
continuam mudando. À medida que se acelera, a busca bioquímica da
felicidade reconfigura a política, a sociedade e a economia. E fica
cada vez mais difícil mantê-la sob controle.
E
as drogas são só o começo. Em laboratórios de pesquisa,
especialistas já estão trabalhando no desenvolvimento de métodos
mais sofisticados de manipular a bioquímica humana, com o envio de
estímulos nervosos diretamente aos pontos específicos no cérebro,
ou com o uso da genética para projetar a planta do corpo.
Independentemente de qual seja o método correto, alcançar a
felicidade por meio de manipulação biológica não será fácil,
pois requer a alteração dos padrões fundamentais da vida. Tampouco
foi fácil vencer a fome, a peste e a guerra.
Estamos
longe da certeza de que a humanidade deve investir tanto esforço na
busca bioquímica da felicidade. Haverá quem diga simplesmente que a
felicidade não tem importância e que é um engano considerar que a
satisfação individual é a meta mais elevada da sociedade humana.
Outros talvez concordem com a máxima de que a felicidade é
realmente o bem supremo, mas vão discutir a definição biológica
da felicidade como o ato de desfrutar sensações prazerosas.
Há
cerca de 2300 anos, Epicuro advertiu seus discípulos de que a busca
sem moderação do prazer provavelmente os faria infelizes, e não o
contrário. Alguns séculos antes, Buda fez uma declaração ainda
mais radical, ao ensinar que a busca de sensações prazerosas é com
efeito a verdadeira raiz do sofrimento. Essas sensações são apenas
vibrações efêmeras e inexpressivas. Mesmo quando as
experimentamos, não reagimos a elas com contentamento; em vez disso,
ansiamos por mais. Não importa, portanto, quantas sensações de
bem-aventurança ou excitação alguém possa experimentar — elas
sempre serão insuficientes.
Se
eu identificar felicidade com sensações prazerosas passageiras e
ansiar por experimentá-las mais e mais, não terei escolha senão a
de buscá-las constantemente. Quando afinal as tenho, elas
desaparecem rapidamente; porém, como a mera lembrança de prazeres
passados não me satisfazem, tenho de começar novamente. Ainda que
continue essa busca durante décadas, ela nunca será uma conquista
duradoura; pelo contrário, quanto mais eu ansiar por sensações
prazerosas, mais estressado e insatisfeito vou ficar. Para alcançar
a felicidade real, os humanos têm de desacelerar, e não acelerar,
em sua busca por sensações prazerosas.
Essa
visão budista da felicidade tem muito em comum com a visão
bioquímica. Ambas concordam com a noção de que as sensações
prazerosas desaparecem tão rapidamente quanto emergem e que,
enquanto as pessoas ansiarem por sensações prazerosas sem de fato
as experimentar, elas permanecerão insatisfeitas. No entanto, esse
problema comporta duas soluções diferentes. A solução bioquímica
consiste em desenvolver produtos e tratamentos que vão oferecer aos
humanos um fluxo sem fim de sensações prazerosas — assim eles
sempre desfrutarão da certeza de tê-las. Buda sugeriu que
reduzíssemos nosso anseio por sensações prazerosas e não
conferíssemos a elas o controle de nossa vida. Segundo Buda, podemos
treinar nossas mentes a observar cuidadosamente como surgem e passam
todas as sensações. Quando a mente aprende a enxergar nossas
sensações tais como elas são — ou seja, vibrações efêmeras e
inexpressivas —, perdemos o interesse em persegui-las. Pois qual o
sentido de correr atrás de algo que desaparece tão rápido quanto
surge?
Atualmente,
a humanidade tem muito mais interesse na solução bioquímica. Não
importa o que dizem os monges em suas cavernas no Himalaia ou os
filósofos em suas torres de marfim: para o rolo compressor
capitalista, felicidade é prazer. Ponto. Cada ano que passa diminui
nossa tolerância em relação às sensações que não oferecem
prazer e aumenta nossa ânsia por sensações que o provocam. Tanto a
pesquisa científica como a atividade econômica estão engrenadas
para atingir esse fim, e a cada ano se produzem analgésicos mais
potentes, novos sabores de sorvetes, colchões mais confortáveis e
mais jogos viciantes para nossos smartphones a fim de que não
tenhamos um só momento de tédio enquanto esperamos o ônibus.
E
tudo isso não será suficiente, é claro. Como a evolução não
adaptou o Homo sapiens a experimentar um prazer constante, e
se é isso que, mesmo assim, a humanidade deseja, sorvete e
smartphone não vão fornecer o prazer procurado. Será
necessário mudar nossa bioquímica e fazer a reengenharia de nosso
corpo e mente. Estamos trabalhando nisso. Pode-se discutir se isso é
bom ou ruim, mas parece que o segundo grande projeto do século XXI —
assegurar a felicidade total — vai envolver a reengenharia do Homo
sapiens para que possa usufruir de um prazer perpétuo.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã
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