São
os últimos dias de agosto. Não muito longe daqui, sabe-se que o
inverno começou a morrer. O frio está impregnado pelo cheiro de
flores amarelas das acácias e se anuncia para breve o estalar das
glicínias, as flores azuis, as flores brancas; logo o ar terá o
cheiro de glicínias, não muito longe daqui, e terá cheiro de maçã
e diabruras. Os dias serão mais longos.
Se
Gustavo pudesse, contaria que aqui os vidros das janelas das celas
foram pintados de branco, para que os presos não vejam o céu.
Contaria que isso é duro de se deixar de lado, mas é duro somente
enquanto dura o dia. Durante a noite, não. A noite, aqui, de
qualquer maneira, é possível imaginá-la, com o Cruzeiro do Sul
ainda alto e as Três Marias sempre demorando para aparecer. Além
disso, contaria Gustavo, é melhor não olhar a noite daqui, não
vale a pena. Para quê? Para ver os refletores girando e girando das
casamatas nas colinas? Não. Se Gustavo pudesse, mais que contar
perguntaria.
E
de qualquer maneira pergunta. Pergunta outras coisas:
– Como
vai indo na escola?
– Machucou
a testa? Como foi?
– Você
não trouxe agasalho?
– Cansou?
São trinta quadras...
É
difícil fazer-se ouvir no meio do vozerio de todos os outros presos
que, ávidos como ele, amassam seus rostos contra os arames. Há duas
telas de arame separando-o de Tavito. Como telas de arame de
galinheiro.
– Eu
não me canso nunca. Caminho e caminho e não me canso.
– Mas
faz frio.
– Eu
caminho e não sinto. Não é verdade, papai? Quando a gente caminha,
o frio se assusta e vai para longe.
Gustavo
permanece na ponta dos pés e Tavito, a meio metro, também: não há
outra maneira de ver as caras ou, pelo menos, adivinhá-las através
dos arames: a cara de Tavito aparece por cima da base de cimento da
tela de galinheiro. A cara, apenas.
Há
muitas coisas para escutar e toda a gente fala e as vozes se
confundem. Às vezes, se abrem uns poucos segundos de silêncio, como
se todas as mulheres e os homens e as crianças se tivessem posto
misteriosamente de acordo para tomar fôlego ao mesmo tempo, e então
fica o fiapo de alguma frase desprendida no ar.
– E
os desenhos? Você não trouxe nenhum desenho?
– Não
tenho desenhos, nenhum.
Tavito
tenta meter um dedo através da tela de arame, o dedo fica
prisioneiro: não se pode.
– Como
que não? E todos aqueles desenhos que...
– Rasguei.
– Quê?
– Estava
com raiva e rasguei tudo.
Gustavo
pensa que as mãos de Tavito devem estar frias. Gustavo acende um
cigarro, sopra fumaça nas mãos. Gostaria de ter um jeito de mandar
calor a Tavito através da tela de arame. Os desenhos. Um olho que
caminha com as pestanas. O doutor relógio usa os ponteiros como
bigodes. Vem o leão e come todos. O leão agarra a lua com uma pata.
Vou explicar. Estes três palhaços batem no leão para que ele solte
a lua e a lua cai e... O cachorro morde a bunda de uma senhora gorda.
Está escutando? Escuta. A gorda está gritando guau, guau, e o
cachorro está dizendo ai, ai.
Agora
Tavito tem as mãos abertas contra a tela de arame e está
soprando-as.
– A
tia Berta está marcada. Marquei ela.
Atrás,
há uma porta pesada, barras de ferro. Os soldados apontam as
metralhadoras e têm cacetetes e também revólveres nos coldres.
Tavito diz:
– Ela
me bateu.
O
ar cheira a umidade e a coisa fechada.
– Deve
ter sido por alguma razão.
Tavito
chuta a mureta com a ponta do sapato. Em seguida ergue os olhos. Esta
maneira perigosa de olhar. Aquela maneira. A cara de Carmen, cara de
menina ávida, quero tudo, quero mais, os olhos curiosos, famintos,
devorando o mundo.
– Está
escutando?
– Sim,
sim.
Gustavo
sente um mal-estar na garganta. Carmen. Levanta o olhar, o teto alto
e cinza. Tavito diz:
– Escuta.
– Sim,
sim. Quê?
– A
barriga. Está falando comigo.
Tavito
faz caretas aos soldados, mostra a língua.
– Por
que bateu em você?
– Quem?
– Berta.
Você disse que ela tinha batido em você.
Tavito
permanece em silêncio com a cabeça baixa. Finalmente fala e Gustavo
mal consegue escutá-lo:
– Ela
fica zangada porque faço pipi na cama.
– E
o Águia do Deserto sabe que você anda se mijando?
O
sangue sobe no rosto de Tavito, faz cócegas.
– Quando
eu for grande, ela vai me pagar.
– O
Águia do Deserto não vai querer ser seu amigo.
– O
Águia não sabe que eu faço pipi na cama.
– Ah,
ele fica sabendo de tudo.
– Claro
que não. Você percebe que ele não vive na mesma vida que eu? Ele
vive na vida da guerra. Minha vida é diferente. Na minha vida existe
uma velha com uma cara de Berta.
Gustavo
não tinha querido que Tavito viesse. Vê-lo, pensara, será pior.
Mas no último domingo pedira a sua irmã que o trouxesse, e que o
esperasse fora.
– E
esse curativo que você tem na testa? Que é isso... Não posso
acreditar que... Mas... E o nariz? Você está com o nariz inchado!
– Você
brigou com dez. No jornal dizia isso. Eu também vou ser forte e
brigar com todos eles.
– Como
foi?
– Na
escola, foi lá, na escola.
– Eu
não briguei com dez nem com nenhum. Você está querendo é parecer
com algum desses veados da televisão.
– Eles
estavam falando mal de você.
– Eles,
quem?
– Eles,
na escola.
– Falando
o quê?
– Que
os soldados vão matar você. Eles diziam isso e eu bati neles e por
pouco não mato todos.
Gustavo
engole saliva. Sente uma opressão na cabeça. As orelhas ardem. Quer
sentar-se. Estar longe. Estar antes. Antes, como era?
Tavito
está falando, está dizendo:
– A
tia Berta me mostrou uma foto de quando você era pequeno. Eu não
tinha conhecido você pequeno. Antes, eu não conhecia...
E
então Gustavo sente que lentamente retrocedem os rostos do filho e
dos companheiros e dos soldados e viaja, deste dia e desta cadeia,
para outro tempo. O velho tempo regressa, o velho mundo, e, antes que
fuja, Gustavo está brincando na beira do mar, ao seu lado o anão
Tachuela está dançando, com uma vassoura parada na palma da mão:
Gustavo perseguia a banda da cidade, os quatro ou cinco velhos
desarticulados que iam desatando a bagunça dos tambores, e adiante
de todos marchava um negro de dentes brilhantes, que soprava a
corneta como ninguém; o negro parava, erguia a corneta com uma mão
e com a outra levantava Gustavo e ria, gargalhada, e o sol, vendo
aquilo tudo, também morria de rir.
– Quis
ficar com a foto, mas ela me tomou.
E,
vinte anos depois, Tavito perguntava por que os pinguins vêm morrer
na costa, e aprendia a pressentir a chuva: canta o bem-te-vi seu
canto quebrado e fugaz, os passarinhos batem as asas contra a terra
levantando pó; as formigas atravessam, desesperadas, os caminhos.
– Quando
você vai voltar para casa?
– Não
sei. Logo.
O
vento norte, o que bate nas suas costas, é vento de terra, mas
quando vem o pampero, Tavito, vem para limpar o ar. Olha.
Hoje, o mar tem espuma de cerveja. Uma gaivota roçou sua cabeça com
uma asa. A espuma se inchava, tremia, abria bocas, respirava. Subia a
maré: o tempo será bom, Tavito. A espuma voava, Tavito tinha
bigodes de espuma.
– Amanhã?
– Pode
ser. Não sei.
Tavito
perseguia as flores de cardo que subiam e flutuavam e subiam pelo ar
e Gustavo perguntava: quem canta? – e Tavito parava, aguçava o
ouvido, dizia: pintassilgo. Não, olha lá: e então Gustavo mostrava
a cabecinha amarela do pica-pau entre os galhos das árvores.
– Quem
é que sabe quando você vai voltar para casa?
– Ninguém
sabe, Tavito.
Quantos
dias se passaram? Quantos meses? Uma noite, descobre-se que fazer a
conta é pior. Antes, antes. Gustavo olha sem ver. Abolir o tempo.
Voltar atrás. Ficar, Carmen, ficar em você. Eu achava, Carmen, que
você não ia terminar nunca. Apertei sua mão e a mão latejava,
estava viva como um pássaro. Antes, antes de tudo. E as estrelas,
papai, que fazem durante o dia? Por que puseram mosquitos na Arca de
Noé? Por que a mamãe morreu? Dois cachorros rodavam mordendo-se
pelas dunas e Gustavo já tinha estado preso, não dormia em casa,
três vezes tinham vindo remexer nas coisas uns caras de uniforme,
estavam armados como os que trabalham na televisão, esses da série
“Combate”, remexiam em tudo na casa e Tavito olhava para eles,
sem pestanejar e sem abrir a boca, grudado na parede; o corpo tremia
até os dedos dos pés. Gustavo tinha dito a ele: há tantas coisas
que você vai ter que descobrir, Tavito. As coisas invisíveis, as
difíceis, a brecha que espera por você entre o desejo e o mundo:
você apertará os dentes, resistirá, nunca pedirá nada. Não, não
se vive para vencer os outros, Tavito. Vive-se para se dar.
Tavito
aponta, com o queixo, os soldados.
– E
estes, não sabem quando você vai voltar?
– Também
não sabem.
Dar-se.
Mas, e ele? Tenho direito?, se pergunta Gustavo agora. Ele, que culpa
tem? Escolhi por ele sem consultá-lo. Me odiará, alguma vez?
Gustavo vê quando ele se aproxima de um dos soldados. Tavito fala, o
soldado encolhe os ombros e em seguida estende a mão para acariciar
sua cabeça. Tavito salta, como se a mão do soldado estivesse
eletrizada.
Tenho
direito? Decidi por ele. Havia outra maneira? Gustavo olha para os
lados, os companheiros, rosto por rosto, os homens com quem divide a
comida e a pena e as palavras de ânimo que passam uns aos outros,
como o mate, de boca em boca. O tempo de agora e o tempo de depois.
Alguém atira para ele, do outro extremo da fila, um maço de
cigarros. Gustavo apanha-o em pleno voo. E então Tavito diz:
– Não
se preocupe.
Diz:
– Quando
eu for astronauta, vamos ir para a lua ou vamos ir pescar.
Fora,
o infinito caminho da terra se estende, pó e frio, através dos
cotos das árvores podadas. Há um sol branco no céu. Tavito olha
fixo para o sol, em seguida fecha os olhos, sente o sol metendo-se,
estremecedor, no corpo. A luz o persegue e aquece suas costas. Entre
o sol e Tavito, caminha uma mulher que leva um pacote de roupa
pendurado em uma mão.
Do
outro lado das colinas, as acácias cheiram a mel. E na cidade, não
muito longe daqui, o vento ergue papéis velhos, em redemoinhos,
pelas ruas. Nos mercados, anunciam morangos de Salto. Os cachorros
cochilam, ao sol, junto dos mendigos. Sentado na beira da calçada,
um garotinho desenha o mundo com um palito.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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